O drama dos 33 mineiros chilenos que ficaram dois meses presos a mais de 600 m de profundidade emocionou o mundo inteiro. No dia do resgate, a chegada de cada um deles à superfície, livre enfim do “cativeiro”, provocava lágrimas pelo mundo afora.
Não fiquei indiferente, é claro, a esses acontecimentos. Pelo contrário, acompanhei tudo talvez até com mais interesse que a média dos brasileiros por uma razão muito simples. Passei treze meses de minha vida profissional trabalhando em uma mina, também subterrânea e também de cobre. Era a Mina Uruguai, uma das Minas do Camaquã (a outra era a Mina São Luiz), em Caçapava do Sul (RS), ambas hoje esgotadas e abandonadas.
Foram os primeiros tempos de meu trabalho como geólogo e me marcaram muito não só por isso, mas também porque foi um trabalho completamente diferente de tudo o que eu vira e aprendera na universidade. A Escola de Geologia da UFRGS formava geólogos principalmente para mapeamento geológico, sem nenhuma ênfase em mineração. Apesar das muitas viagens e trabalhos práticos feitos durante os quatro anos do curso, com excursões que chegaram até ao Paraná, nunca visitamos numa mina subterrânea, nunca vimos uma sonda funcionando e nunca estivemos numa mina de cobre ou de carvão, embora tudo isso existisse no Rio Grande do Sul. O mapeamento que se fazia na universidade era nas escalas 1/100.000, 1/50.000 ou 1/10.000, nada parecido com mapeamento 1/250, ultradetalhado, como fiz nas Minas do Camaquã. Eu nunca ouvira falar em mapeamento nessa escala, assim como nunca me haviam dito que existia sondagem subterrânea.
Com relação à segurança, as Minas do Camaquã também registravam acidentes, mas não eram frequentes. A rocha tinha uma boa resistência mecânica e as galerias não exigiam revestimento, a não ser em alguns pontos específicos. Na Mina Uruguai, isso acontecia num dos blocos, o 502, se não me falha a memória. Ali, passava um soberbo veio maciço de bornita com 50 cm de espessura. O mineral de cobre mais comum no mundo todo e naquelas minas é a calcopirita, que tem 34,57% de cobre; a bornita, porém, é bem mais rica, com 63,3%. Aquele rico veio era muito menos resistente que as rochas predominantes na jazida e muito sujeito a caimentos. Desse modo, apesar de muito rico não era lavrado, a não ser nos meses em que a produção caía muito. Aí, ele .era a salvação...
Meu trabalho era a 250 m de profundidade, bem menos que os 620 em que estavam os 33 mineiros chilenos. Mas, em compensação, não descíamos de elevador, e sim a pé. Uma galeria com 30º de inclinação, com uma escada que eram simples ripas de madeira afixadas no chão barrento, era nosso caminho até lá em baixo, usando como corrimão os canos que levavam e traziam água e que eram ora quentes ora frios. Descer era fácil, bastava ter atenção. Subir, porém, exigia muito mais: precisava ter fôlego e pernas fortes. Eu era um dos poucos técnicos na mina que conseguia subir sem parar até à superfície.
Lá em baixo, a iluminação era boa, a ventilação também, com temperatura amena. O ar só fica nocivo logo após a explosão das cargas de dinamite, o que acontecia poucas vezes por dia. Após a detonação, era necessário esperar um tempo para então entrar.
O que não era bom era o sistema de alerta na hora das explosões. Os geólogos não tinham um horário regular de trabalho, entrando e saindo da mina quando quisessem. Uma vez, eu estava entrando quando encontrei um grupo de mineiros saindo. O primeiro deles me olhou rapidamente e, sem parar, resmungou baixo: “Tá queimando...”. E só. Não entendi direito, e decidi continuar. Após alguns segundos, ouvi tremendo estampido. Estavam dinamitado um bloco que, na explosão principal, saíra grande demais para ser transportado.
Também não era boa a iluminação em galerias e travessas já abandonadas, mas aí com razão. Se ninguém andava por elas, não havia por que iluminá-las. Entretanto, houve vezes em que, encerrado meu trabalho, andei por algumas delas, sozinho e sem avisar ninguém. Foi a suprema imprudência que cometi naquele emprego. Se ocorresse um desabamento – e havia pontos onde se via que eles já haviam ocorrido – eu poderia ficar preso sem que me procurassem lá, simplesmente porque não havia nenhuma razão para eu estar naquele local.
O trabalho de mapeamento de galerias exigia uma paciência sem fim. Além da vestimenta especial para trabalho em mina subterrânea – botas, capacete e guarda-pó – era preciso levar a lanterna, com uma bateria de 2 kg presa à cintura e o material de mapeamento geológico: bússola, martelo, fita métrica, prancheta, escalímetro, mapa topográfico da galeria, um plástico incolor para protegê-lo na prancheta e lapiseiras azul, vermelha, verde e preta. Pode parecer muita coisa e era mesmo. E isso tudo tinha que ser manuseado com cuidado para não molhar, pois chão, teto e paredes costumavam estar úmidos, até porque era preciso lavar a rocha para se fazer o mapeamento. Um auxiliar ajudava o geólogo, mas sua função era principalmente segurar a ponta da fita métrica na hora das medições.
Tudo isso, porém, tinha seu lado bom. Como eu disse, tudo aquilo era novidade para o geólogo recém-formado. Foi um 5º ano de curso universitário, essencialmente prático e, o que era muito melhor, bem remunerado. Para um colecionador de minerais, como era o meu caso, havia o contato direto e constante com vários minerais de cobre, com facilidade para coletar belas peças de coleção.
Os acidentes, eu já disse, não eram frequentes. Mas, compareci um dia ao enterro de um mineiro que morrera soterrado. Foi um só, mas nunca foi esquecido. Como nunca esqueci a temeridade – para não dizer idiotice – que foram minhas incursões solitárias por galerias abandonadas.
Por tudo isso, emocionei-me com o resgate dos 33 mineiros chilenos que deram uma maiúscula demonstração de equilibro e coragem, mantendo-se lúcidos até serem encontrados e confiantes até serem resgatados. Talvez eles nunca mais sejam os mesmos depois do que passaram. Mas, deixaram uma bela lição a seus colegas de profissão de todo o mundo.
Em agosto de 2013, após três anos de investigações, a Promotoria de Atacama (Chile) encerrou o caso dos 33 mineiros que ficaram presos na mina de cobre por 69 dias. A Promotoria concluiu que não houve culpados, o que deixou revoltado Mário Sepúlveda, líder dos mineiros que ficaram aprisionados no subsolo.
ResponderExcluirEm 2014, será lançado um filme contando a história do acidente, e Sepúlveda será interpretado por Antonio Banderas.