terça-feira, 16 de abril de 2013

UMA PRAÇA ONDE AS ESTRELAS JÁ NÃO BRILHAM





            Quando foi aberta a Av. Loureiro da Silva, em  Alegre, na década de 70 do século passado, na confluência dela com a Rua Avaí ficou sobrando um pequeno terreno em forma de triângulo, medindo cerca de 60 m x 80 m, que foi transformado em praça.

            Não era das praças mais bem cuidadas da cidade e muitas vezes tive que pedir, em nome da Associação dos Amigos da 24 de Maio e Adjacências (Amivi) que fizessem limpeza, poda, corte de grama, etc.

            Certo dia, em 2004, caminhando por ali, me dei conta de que a praça não tinha nome!  Por incrível que pareça, não havia nenhuma placa com nome do logradouro nem eu vira ou ouvira uma vez sequer seu nome. E resolvi sugerir uma denominação para aquele logradouro.

            Os caminhos entre os mal cuidados canteiros da pracinha haviam sido revestidos com saibro e nele havia abundantes cristais de muscovita, uma das micas mais comuns.  À noite, essas pequenas palhetas do mineral refletiam a luz dos postes e tornavam cintilante o chão do local. Inspirado nisso, escrevi a um vereador conhecido propondo que se desse àquele local o nome de Praça Chão de Estrelas. Assim fazendo, o legislativo porto-alegrense estaria homenageando um dos grandes compositores brasileiros (Orestes Barbosa), uma composição que é um clássico da música popular brasileira (Chão de Estrelas) e, indiretamente, homenageando também a Geologia, através das modestas palhetas de muscovita que no seu chão cintilavam.

Eu tinha consciência de que minha sugestão era exótica, pois nesta leal e valorosa Porto Alegre ruas, praças, avenidas, etc., recebem sempre nome de pessoas famosas. Há muito se foi o tempo em que recebiam nomes como Rua da Praia, Rua do Parque ou Rua Saudável. Mas, quixotescamente encaminhei a sugestão.

Minha correspondência não mereceu resposta, porém pouco tempo depois instalaram na praça uma placa com os dizeres Pç. Salvador Allende – Herói das Américas. Tudo bem, eu não acreditava mesmo que minha sugestão fosse aceita e Allende tem lá seus méritos, ainda que seja apenas a fidelidade aos seus ideais, que demonstrou ter à morte. O nome da praça, descobri recentemente, foi dado por lei municipal de 8 de setembro de 2004.

Continuou a praça, agora com nome, no mesmo semiabandono de sempre até novembro de 2012, quando começou a passar por completa reforma, contrapartida de um projeto que prevê a construção junto a ela, em 2013, de um hotel de dezoito andares, com lojas comerciais e garagens.  Só que as obras começaram mal.

Um anúncio do empreendimento com fotomontagem, publicado na revista Veja, edição de 12 de dezembro, pareceu-me propaganda enganosa, além de conter erros técnicos. Enviei-o ao Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) e o conselho, concordando comigo, abriu um processo ético contra a empresa responsável.

Mas, o mais triste foi que, no dia 8 de novembro, derrubaram a maior árvore que havia na praça (foto abaixo). Ela tinha, eu reconheço, raízes ousadas e atrevidas, que se espalhavam em todas as direções. Mas, assim era havia muitos anos e nunca se ouvira qualquer reclamação. Elas só se tornaram problema quando decidiram construir um hotel ali perto... Raízes igualmente atrevidas e ousadas existem, por exemplo, na Pç. Raul Pilla, a 200 m dali, com o agravante de já haverem detonado a calçada, e, no entanto nada foi feito até hoje. 



A derrubada da árvore revoltou moradores, houve gente chorando, a presidente da Amivi pediu explicações à Smam (Secretaria Municipal do Meio Ambiente) e o que conseguiu foi uma resposta arrogante da funcionária que a atendeu.

Mas se a derrubada da árvore se justificava, inaceitável foi a atitude de extrema arrogância e insensibilidade de instalarem um plantão de vendas do empreendimento imobiliário exatamente ao lado do que dela restou, a base do tronco, que ali ficou por uns dias (foto abaixo). Foi puro deboche !



Mas, nada mais havia a fazer. A Praça Salvador Allende, como eu disse, passou por uma completa reforma. Ganhou nova iluminação, bancos e lixeiras  também novos, algumas árvores, etc. Só que... cobriram o saibro onde a mica cintilava com uma espessa e insensível camada de concreto. Todo o espaço entre os canteiros é agora puro concreto. Clarinho, uniforme, seguro para se caminhar, mas não mais com cristais de mica, não mais com a muscovita que permitia a qualquer pessoa "pisar os astros distraída" e que antes "salpicava de estrelas nosso chão".


sexta-feira, 5 de abril de 2013

A PEDREIRA DE MORRO REUTER




            Um colecionador, seja lá do que for, pode aumentar sua coleção de três formas: comprando peças novas, obtendo-as por troca ou ganhando-as de presente.

            O colecionador de minerais tem uma quarta e muito agradável maneira de ampliar sua coleção: coletar ele próprio os minerais, em estradas, pedreiras, rios, minas, garimpos, etc.

Nos meus 46 anos de colecionador de minerais, um dos melhores lugares que conheci para fazer isso foi a pedreira de Morro Reuter (pronuncia-se Róiter), situada aqui no Rio Grande do Sul, a 80 km de Porto Alegre, junto à cidade de mesmo nome.

            Visitei aquele local muitas vezes e lá obtive algumas das melhores peças da minha coleção, entre elas os maiores cristais de escolecita que vi até hoje, com 17 cm de comprimento (foto abaixo), e a maior apofilita e a maior estilbita que já encontrei, ambas com 10 cm.



  





            Quando descobri aquele paraíso dos colecionadores, Morro Reuter era ainda um distrito do município de Dois Irmãos. Localizada a pequena distância da sede e com acesso muito fácil, visitei a pedreira sempre que pude. O fato de pertencer à Prefeitura de Dois Irmãos (depois à de Morro Reuter) também facilitou minhas visitas.

            Há, no local, uma sucessão de derrames basálticos, contendo um intervalo de aproximadamente 1 m de espessura muito vesicular, onde se concentra a maior parte dos belos minerais para coleção.  A frente de lavra tem talvez uns 30 m de altura, com o intervalo rico em cristais situado pouco abaixo da zona central.

            Visitar aquela pedreira gerava sempre uma grande expectativa, porque eu nunca sabia o que iria encontrar. Dependendo do ponto do maciço rochoso que estava sendo desmontado, poderia haver muita quantidade de cristais para coleta, ou apenas basalto, se o desmonte estivesse sendo na parte superior do morro. Como podia também não haver nem sequer basalto, como ocorreu certa vez, quando encontrei os operários decapando o local, ou seja, removendo a camada de solo para depois então dinamitarem a rocha. E podia acontecer ainda de simplesmente as atividades estarem paralisadas porque a produção de brita ocorria na medida das necessidades da Prefeitura.

          Mas, daquele intervalo de 100 cm de basalto saiu um volume incrível de geodos com apofilita (incolor ou verde) e zeólitas (estilbita, escolecita e heulandita, principalmente). Mas, saíram também calcita, ametista, cristal de rocha e outras zeólitas (laumontita, mesolita, mordenita, cabazita e clinoptilolito).






         A foto acima mostra um agregado de escolecita, apofilita verde e laumontita de 30 cm aproximadamente, pertencente ao Museu de Geologia da CPRM.

        A prefeitura promovia o desmonte da rocha unicamente para produção de brita. Ou seja, todo o basalto que saía dali era transformado em brita para as obras municipais, inclusive os cristais maravilhosos de seus geodos e que, por ironia, eram de péssimo valor como brita!  Por isso, quando alguém me dizia que ia lá, eu pedia que trouxesse tudo o que pudesse de minerais para coleção, porque o que ficasse certamente seria triturado.

Estive na pedreira a primeira vez no fim de novembro de 1987. Fiquei tão maravilhado com o que vi e tão chocado com a destruição de agregados cristalinos que poderiam estar em qualquer museu do mundo que escrevi à Prefeitura de Dois irmãos no dia 2 de dezembro, sugerindo que criassem um museu onde fosse preservada uma parte daquele valioso patrimônio mineralógico.

Prevendo um possível desinteresse do prefeito pelo assunto, enviei carta de mesmo teor à Câmara de Vereadores do município. Nenhuma das duas mereceu resposta.

Posteriormente, fiquei sabendo que Dois Irmãos já possuía um museu e tentei visitá-lo duas vezes, mas nas duas ocasiões ele estava fechado. Mais tarde, consultando o Guia de Museus Brasileiros, soube que o museu tinha em seu acervo fotografias, objetos pessoais, livros, periódicos, instrumentos musicais e material bibliográfico. De minerais, nenhuma notícia...

Em 25 de novembro de 1996, levei à pedreira o mineralogista alemão Herbert Pöllmann, que viera ao Rio Grande do Sul para conhecer as zeólitas deste estado. Foi a melhor das cerca de seis visitas que eu fiz ao local até aquela data, pois encontramos muito material desmontado.  Pöllmann viajava com frequência ao Brasil, Estados Unidos e outros países e ficou encantado com o que viu, dizendo que aquele afloramento era um caso possivelmente único no mundo pela quantidade de zeólitas que produzia. Ele coletou várias amostras, que levou para analisar.

Em março de 1997, voltei lá e foi quando encontrei um cristal de estilbita medindo incríveis 10 cm, junto com um cristal de apofilita, também de 10 cm, bem maiores que os cristais de 2-3 cm habitualmente encontrados nos basalto do sul do Brasil. O geodo com recordistas cristais de escolecita de 17 cm, hoje pertencente ao Museu de Ciências Naturais da Universidade Luterana do Brasil (Canoas, RS), já havia sido por mim encontrado em visita anterior.

Em outra oportunidade, levei comigo o Vinícius, um sobrinho de uns oito anos de idade. Ele também começou a procurar cristais bonitos e a todo instante vinha me perguntar se devia ou não levar uma peça que lhe chamara a atenção. Tanto ele fez isso que eu lhe disse para juntar num mesmo local tudo o que achasse de bonito, que depois eu iria olhar e diria ele o que valia a pena levar para casa ou não. Pois para minha surpresa, quando fui ver o resultado da coleta dele, encontrei um lindo geodo de heulandita, medindo 8 x 9 x 8 cm, com cristais de até 15 mm (foto abaixo) . Era tão bonito que propus comprá-lo. O garoto ficou meio indeciso, mas acabou me vendendo - por um preço muito justo, que eu não iria lograr uma criança, menos ainda meu sobrinho e afilhado.







Voltamos para casa e no dia seguinte uma das minhas irmãs me contou ao telefone que também comprara uma pedra do Vinícius. Quando vi a tal pedra, me surpreendi: era um lindo agregado medindo 11 x 8 x 5 cm, de escolecita com apofilita verde e estilbita, que ele lhe oferecera pelo mesmo preço que eu pagara pelo outro. Era tão bonita que ele nem me perguntara se levava ou não para casa.  Esperto o meu afilhado...








Em uma das muitas vistas, foi comigo o geólogo Carlos Alberto Giovanini. Fizemos uma boa coleta e já estávamos dentro do carro, prontos para vir embora, quando um operário da pedreira, que estava quebrando com a marreta pequenos blocos, disse:

- Olhe, aqui apareceu uma bonita.

Eu já estava satisfeito com o que conseguira e sugeri ao Giovanini, que estava mais próximo, que fosse ver. Ele foi. Foi e trouxe um incrível geodo de escolecita com cristais finíssimos, extremamente delicados. Tão delicados que bastava tocar levemente com um dedo para que quebrassem. Aliás, foi o que lamentavelmente fez outro colega, curioso, quando viu aquela beleza dias depois.  Este geodo faz parte hoje do acervo do Museu de Geologia da CPRM.

O geólogo Heinrich Theodor Frank, professor da UFGRS e talvez o geólogo que mais conhece as pedreiras de basalto do Rio Grande do Sul, estava comigo em outra visita à Pedreira de Morro Reuter. E foi ele quem achou e me chamou para ver um geodo grande, de uns 40 cm de comprimento, cheio de cristais de escolecita. Eram também muito delicados, mas bem mais largos do que habitualmente se vê, com até 5 mm de largura e 7 cm de comprimento. O agregado cristalino era tão delicado e o geodo estava tão imerso na rocha que era impossível retirá-lo ou coletar uma boa amostra. Cada batida com o martelo soltava um punhado daqueles belos cristais. Concordamos que era uma coisa linda de ver, mas que jamais poderíamos trazer. Com isso, Frank desistiu. Eu também desisti, mas resolvi juntar o que já havia de cristais soltos dentro do geodo para depois em casa, olhar com mais cuidado e ver se valia a pena guardar.  E foi em casa, examinando-os um a um que vi, sobre alguns cristais de escolecita, pequenos cristais milimétricos de apofilita incolor, num arranjo pequeno mas de grande beleza (foto abaixo).






Por tudo isso que descrevi até aqui e porque os belos geodos extraídos em Morro Reuter eram destruídos na produção de brita, propus a inscrição daquela pedreira no cadastro da Comissão de Sitios Geológicos e Paleontológicos (Sigep). Trata-se de uma comissão que tem por objetivo preservar afloramentos de grande interesse geológico ou paleontológico, por seu valor científico. Qualquer geólogo pode fazer uma proposta neste sentido e a comunidade geológica do país todo é convidada a opinar sobre a proposta. 

Minha proposta foi aceita, mas acabou sendo retirada ainda na fase de votação por iniciativa também minha. É que me dei conta de que se o desmonte do basalto para a produção de brita destruía os belos geodos, sem esse desmonte eles não eram produzidos. Ou seja, o desmonte de rocha era a um só tempo responsável pela extração e destruição dos geodos. Preservar o afloramento então impediria que eles fossem destruídos, mas também impediria que fossem produzidos. A solução era, portanto, aquela que eu apresentara à Prefeitura de Dois Irmãos lá em 1987: salvar as peças mais valiosas, colocando-as num museu ou mesmo, quem sabe, vendendo-as.

O que fiz com tantas amostras de minerais bonitas coletadas lá ?  Poucas ficaram comigo por absoluta falta de espaço, e a maioria delas pertence hoje ao Museu de Ciências Naturais da Ulbra, em Canoas (RS). Algumas peças que coletei foram diretamente para o Museu de Geologia da CPRM, em Porto Alegre. Mandei muitas para diversos países, em trocas que fiz com colecionadores estrangeiros. Pelo menos duas remessas eu fiz ao engenheiro Emílio Garibaldi, colecionador de Belo Horizonte. E uma quantidade muito grande, principalmente de escolecita, foi doada pelo Museu de Geologia a escolas, estudantes e colecionadores e ao público em geral que visitou as exposições por ele promovidas.

                                        Apofilita (levemente esverdeada) e estilbita



Com a descrição feita até aqui, acho que todo geólogo, mesmo quem não é colecionador de minerais ficou no mínimo curioso para conhecer a Pedreira de Morro Reuter. Mas, lamento contar agora o triste fim dessa história até aqui maravilhosa.

A pedreira, eu disse no início, ficava a pequena distância da cidade de Morro Reuter. Ficava. A cidade cresceu, cresceu e chegou até à pedreira. E aí, como acontece em muitos lugares, começaram os conflitos entre a atividade extrativa mineral e a população urbana. Os moradores começaram a se queixar do ruído das explosões, dos caminhões, da poeira, etc. meio esquecidos de que a pedreira já estava lá quando a cidade chegou. Mas, como era de se esperar, as autoridades ambientais, no caso a Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental) acabaram interditando a pedreira.

Ainda houve alguma atividade, mas esporádica. Em abril de 1997, não só os trabalhos estavam completamente paralisados como a pedreira estava sendo usada como depósito de lixo.

Em janeiro de 2005 voltei lá pela última vez. Não havia qualquer atividade e nada havia que valesse a pena coletar. Era o fim definitivo da bela história, de um paraíso mineralógico. Um paraíso do qual os colecionadores nunca foram expulsos; ele é que foi expulso da vida dos colecionadores.