sábado, 9 de maio de 2015

A SERRA DO RIO DO RASTRO, UMA ATRAÇÃO GEOTURÍSTICA


Assim como a praia da Joaquina, em Florianópolis e as praias de Torres, no Rio Grande do Sul, a serra do Rio do Rastro é uma notável atração geoturística.
Ela era antigamente chamada de Serra do Doze e fica entre as cidades catarinenses de Lauro Müller e Bom Jardim da Serra (após a qual vem São Joaquim), sendo acessada pela SC-438.
Apesar de ser muito conhecida como atração turística, poucos sabem, excetuando os geólogos,  que ela tem uma enorme importância também para a geologia do Brasil, particularmente da região Sul, como veremos a seguir.
Eu nunca havia ouvido falar naquela serra, até o dia em que, morando  no Rio de Janeiro, recebi um postal de lá, enviado pelo meu sogro. Aquela estrada na foto, serpenteando por uma distância enorme, me deixou louco de vontade de conhecê-la e com a firme determinação de ir lá na primeira oportunidade, para ver ao vivo aquela que os catarinenses chamam de a mais bela estrada do Brasil.





                                Fotos: Wikipédia (superior) e Verlei Mariot

Quando voltei residir em Porto Alegre, trabalhando no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, não só pude conhecê-la, em 11.02.1981, como passei por lá passei várias vezes, subindo e descendo, a passeio e a trabalho, feliz e preocupado, com bom e com mau tempo, antes e depois de a rodovia ser pavimentada (mas não depois de ganhar iluminação). 

O turismo

A gente sobe, através da SC-438, nada menos de 1.200 metros em apenas 13 km. Se pavimentar uma estrada destas foi uma grande obra, abri-la foi obra muitíssimo mais grandiosa. A decisão de vencer aquela serra, com dificuldades técnicas muito maiores do que as que enfrentaria hoje, merece o reconhecimento de todos os catarinenses e brasileiros. Em 1903, o governador Vidal Ramos inaugurou uma estrada que devia ser bem estreita. Depois, Irineu Bornhausen a alargou, deixando com jeito de estrada mesmo, e Espiridião Amin a pavimentou.
E é aí que se flagra uma grande injustiça: no topo da serra, foi construído um mirante onde se colocou uma placa em homenagem a Bornhausen e que tinha uma bela frase: Parecia impossível, mas com uma tenacidade incrível, ele rasgou, nas rochas da serra do Rio do Rastro, uma estrada que nos une, nos dá vida e nos espanta de beleza.  
Pois bem: com a conclusão das obras de pavimentação, o governador Espiridião Amin mandou colocar (ou permitiu que colocassem) não um, mas dois monumentos, maiores que o primeiro, assinalando a conclusão dos dois trechos da obra realizada em seu governo. Os monumentos são, reconheço uma homenagem merecida. Só que a placa em homenagem a Irineu Bornhausen foi removida. Com isso, quem passa pelo local fica sabendo que Amin mandou pavimentar a estrada, mas não sabe que foi outro governador que a mandou construir, concluindo assim que a abertura e pavimentação foram obra de um governo só. Mas, lá está a belíssima estrada, hoje inclusive iluminada em todo o trecho da serra, com energia eólica.

                                      Foto Verlei Mariot

Se antes da pavimentação passar por ali exigia grande habilidade ao volante, extrema prudência e muita coragem, hoje ela requer apenas boa habilidade e razoável coragem, mas ainda muita prudência. E se você pretende admirar a belíssima paisagem durante o trajeto de subida ou descida, não dirija. Quem está ao volante não consegue olhar para os lados.
O rio do Rastro nasce lá em cima, como um regato, e  vai engrossando à medida que desce. Numa das várias vezes em que desci a serra, soprava lá no topo, um vento extremamente forte. Tão forte que podia desequilibrar e derrubar uma pessoa. Eu estava bem no bordo do planalto, onde começa a descida, e vi que, em certos momentos, vinha lá de baixo uma neblina que logo se desvanecia, para em seguida voltar de novo. Eu não conseguia entender aquilo, pois o dia estava claro, e só fui descobrir o que era quando finalmente comecei a descer.
O vento, forte como era, levantava as águas do rio do Rastro (naquele ponto, apenas um riacho), suspendendo completamente, por alguns segundos, a sua queda! Quando cessava a lufada de vento, as águas voltavam a cair. Novo pé de vento, e lá se iam as águas para o céu!
Que coisa... Não é sempre que se vê um rio ser vencido pela força do vento!



Menos feliz eu fui na noite em que desci ali sozinho, em meio a um denso nevoeiro. Várias vezes precisei parar e dar marcha-a-ré porque estava indo de encontro à mureta de proteção... Felizmente a estrada tem agora iluminação.
Em 21 de julho de 1981, nevou a madrugada inteira. Eu morava em Criciúma (SC) e no dia seguinte, meus colegas e eu decidimos subir a serra para ver a neve. Quando chegamos ao sopé, dava para ver o topo do planalto pintado de branco. Mal começamos a subir, encontramos colegas de trabalho da CPRM (Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) fazendo um furo de sonda. E o engenheiro, um mineiro, usava apenas camisa de manga curta!
Em outra ocasião, eu estava lá em cima e de repente fui envolvido por uma nuvem. Ela passava rente ao chão, mas a 1.400 m de altitude!
Coisas estranhas e belas são vistas naquela serra...



A geologia da serra do Rio do Rastro

Como eu disse, a serra do Rio do Rastro é mais que uma belíssima atração turística.  Ele é uma aula de Geologia. Foi nela que se definiu a coluna estratigráfica da Bacia do Paraná, ou seja, ali é que foram estudadas, descritas e denominadas as rochas da grande sequência de formações geológicas que existe nos estados da região Sul e países vizinhos, e que ocupa mais de 1.200.000 km². Foi trabalho do geólogo norte-americano Israel Charles White, entre 1904 e 1906, daí ser aquela sequência de rochas conhecida também pelos geólogos como Coluna White
Não é por acaso, portanto, que unidades estratigráficas como Rio Bonito, Guatá, Passa-Dois, Palermo, Estrada Nova e Rio do Rastro, nomes tão familiares aos geólogos do Sul,  correspondem a topônimos daquela região.



                                          Charles White -  Foto: Wikipédia

Essas rochas encontradas no sul do Brasil aparecem também na África, pois formaram-se antes da separação dos dois continentes. Os basaltos, o final da sequência, começaram a se formar justamente quando teve início essa separação.
Na década de 1980, o DNPM identificou as formações geológicas da coluna estratigráfica com dezessete marcos de concreto fixados junto à estrada (será que ainda existem?). O marco 1 foi colocado na cidade de Lauro Müller, a 200 m de altitude. O marco 17, lá em cima, 17 km adiante, no topo dos derrames basálticos, a 1.400 m de altitude.
No meio desse trecho, havia até um Museu Geológico, que uma chuvarada destruiu e que não foi reconstruído.
O ponto onde a estrada passa de rodovia muito sinuosa para a categoria de pirambeira, tornando-se muito mais íngreme, marca o início do intervalo de basaltos, rochas vulcânicas que, por serem mais resistentes à erosão, deixam o perfil da serra muito mais escarpado. Esses basaltos continuam aflorando até terminar a subida.
Este é o trecho onde é mais difícil dirigir. Mas, em compensação, é o que pode fazer a alegria dos colecionadores de minerais.
Ele é composto por uma sucessão de derrames de lava e cada um desses derrames tem na sua parte superior, uma associação de minerais muito interessantes para coleção.
Para a pavimentação, a estrada precisou ser alargada em vários pontos e, com isso, em muitos lugares podiam-se obter amostras muito boas de minerais variados. Tive o privilégio de passar por ali em 1981, logo depois de a estrada ser pavimentada e vivi uma das minhas melhores experiências de colecionador. Foi bom demais!
Vi um derrame que continha cristais de ametista, heulandita, calcita e escolecita. Logo adiante, outro derrame, este com quartzo enfumaçado, heulandita, calcita, laumontita, ametista, cristal de rocha e obsidiana.  Após mais 1,7 km de estrada, escolecita, estilbita e laumontita.
Eu estava sozinho e queria muito compartilhar aquelas descobertas. Mas, como e com quem?  O jeito que achei foi pegar uma lata de tinta spray que tinha no carro e escrever, abreviadamente, na mureta da estrada, os minerais que encontrava em cada ponto (HEU para heulandita, EST para estilbita, etc.). Por serem abreviaturas, eu sabia que das pessoas que viessem a ler, talvez só os geólogos entendessem. Mas, foi a maneira que achei de compartilhar a emoção das descobertas. Foi também minha única atuação como pichador em toda a minha vida.  E não me arrependo, porque a causa era nobre.
Outra vez, encontrei naquela estrada uma drusa de ametista e fiquei na dúvida se a trazia ou não, pois os cristais eram bonitos, mas o conjunto, bem pesado. Acabei deixando lá, mas marquei bem o lugar para achá-la se viesse a me arrepender. Arrependi-me mesmo, mas alguns meses depois subi a serra, num dia horrível, frio e com chuvisco. Quando cheguei àquele local, desci e encontrei a drusa exatamente onde a deixara. Em menos de um minuto, eu estava de volta ao carro com ela.

Assim é a serra do Rio do Rastro, cheia de surpresas, encantamento, descobertas e emoção.