Assim como a praia da Joaquina, em Florianópolis e as praias de
Torres, no Rio Grande do Sul, a serra do Rio do Rastro é uma notável atração
geoturística.
Ela era antigamente chamada de Serra do Doze e fica entre as
cidades catarinenses de Lauro Müller e Bom Jardim da Serra (após a qual vem São
Joaquim), sendo acessada pela SC-438.
Apesar de ser muito conhecida como atração turística, poucos
sabem, excetuando os geólogos, que ela
tem uma enorme importância também para a geologia do Brasil, particularmente da
região Sul, como veremos a seguir.
Eu nunca havia ouvido falar naquela serra, até o dia em que, morando
no Rio de Janeiro, recebi um postal de lá, enviado pelo meu sogro. Aquela
estrada na foto, serpenteando por uma distância enorme, me deixou louco de
vontade de conhecê-la e com a firme determinação de ir lá na primeira
oportunidade, para ver ao vivo aquela que os catarinenses chamam de a mais bela estrada do Brasil.
Fotos: Wikipédia (superior) e Verlei Mariot
Quando voltei residir em Porto Alegre, trabalhando no Rio Grande
do Sul e em Santa Catarina, não só pude conhecê-la, em 11.02.1981, como passei
por lá passei várias vezes, subindo e descendo, a passeio e a trabalho, feliz e
preocupado, com bom e com mau tempo, antes e depois de a rodovia ser
pavimentada (mas não depois de ganhar iluminação).
O turismo
A gente sobe, através da SC-438, nada menos de 1.200 metros em apenas
13 km. Se pavimentar uma estrada destas foi uma grande obra, abri-la foi obra muitíssimo
mais grandiosa. A decisão de vencer aquela serra, com dificuldades técnicas
muito maiores do que as que enfrentaria hoje, merece o reconhecimento de todos
os catarinenses e brasileiros. Em 1903, o governador Vidal Ramos inaugurou uma
estrada que devia ser bem estreita. Depois, Irineu Bornhausen a alargou,
deixando com jeito de estrada mesmo, e Espiridião Amin a pavimentou.
E é aí que se flagra uma grande injustiça: no topo da serra, foi
construído um mirante onde se colocou uma placa em homenagem a Bornhausen e que
tinha uma bela frase: Parecia impossível, mas com uma tenacidade incrível,
ele rasgou, nas rochas da serra do Rio do Rastro, uma estrada que nos une, nos
dá vida e nos espanta de beleza.
Pois bem: com a conclusão das obras
de pavimentação, o governador Espiridião Amin mandou colocar (ou permitiu que colocassem)
não um, mas dois monumentos, maiores que o primeiro, assinalando a conclusão
dos dois trechos da obra realizada em seu governo. Os monumentos são, reconheço
uma homenagem merecida. Só que a placa em homenagem a Irineu Bornhausen foi
removida. Com isso, quem passa pelo local fica sabendo que Amin mandou pavimentar
a estrada, mas não sabe que foi outro governador que a mandou construir, concluindo
assim que a abertura e pavimentação foram obra de um governo só. Mas, lá está a
belíssima estrada, hoje inclusive iluminada em todo o trecho da serra, com energia
eólica.
Foto Verlei Mariot
Se antes da pavimentação passar por
ali exigia grande habilidade ao volante, extrema prudência e muita coragem,
hoje ela requer apenas boa habilidade e razoável coragem, mas ainda muita prudência.
E se você pretende admirar a belíssima paisagem durante o trajeto de subida ou descida,
não dirija. Quem está ao volante não consegue olhar para os lados.
O rio do Rastro nasce lá em cima, como um regato, e vai
engrossando à medida que desce. Numa das várias vezes em que desci a serra, soprava
lá no topo, um vento extremamente forte. Tão forte que podia desequilibrar e
derrubar uma pessoa. Eu estava bem no bordo do planalto, onde começa a descida,
e vi que, em certos momentos, vinha lá de baixo uma neblina que logo se
desvanecia, para em seguida voltar de novo. Eu não conseguia entender aquilo, pois
o dia estava claro, e só fui descobrir o que era quando finalmente comecei a
descer.
O vento, forte como era, levantava as águas do rio do Rastro
(naquele ponto, apenas um riacho), suspendendo completamente, por alguns
segundos, a sua queda! Quando cessava a lufada de vento, as águas voltavam a
cair. Novo pé de vento, e lá se iam as águas para o céu!
Que coisa... Não é sempre que se vê um rio ser vencido pela força
do vento!
Menos feliz eu fui na noite em que desci ali sozinho, em meio a
um denso nevoeiro. Várias vezes precisei parar e dar marcha-a-ré porque estava
indo de encontro à mureta de proteção... Felizmente a estrada tem agora iluminação.
Em 21 de julho de 1981, nevou a madrugada inteira. Eu morava em
Criciúma (SC) e no dia seguinte, meus colegas e eu decidimos subir a serra para
ver a neve. Quando chegamos ao sopé, dava para ver o topo do planalto pintado
de branco. Mal começamos a subir, encontramos colegas de trabalho da CPRM
(Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais) fazendo um furo de sonda. E o
engenheiro, um mineiro, usava apenas camisa de manga curta!
Em outra ocasião, eu estava lá em cima e de repente fui
envolvido por uma nuvem. Ela passava rente ao chão, mas a 1.400 m de altitude!
Coisas estranhas e belas são vistas naquela serra...
A geologia da serra do Rio do Rastro
Como eu disse, a serra do Rio do Rastro é mais que uma belíssima
atração turística. Ele é uma aula de
Geologia. Foi nela que se definiu a coluna estratigráfica da Bacia do Paraná,
ou seja, ali é que foram estudadas, descritas e denominadas as rochas da grande
sequência de formações geológicas que existe nos estados da região Sul e países
vizinhos, e que ocupa mais de 1.200.000 km². Foi trabalho do geólogo norte-americano Israel
Charles White, entre 1904 e 1906, daí ser aquela sequência de rochas conhecida
também pelos geólogos como Coluna White.
Não é por acaso, portanto, que unidades estratigráficas como Rio
Bonito, Guatá, Passa-Dois, Palermo, Estrada Nova e Rio do Rastro, nomes tão familiares aos geólogos do Sul, correspondem a topônimos daquela região.
Charles White - Foto: Wikipédia
Essas rochas encontradas no sul do Brasil aparecem também na
África, pois formaram-se antes da separação dos dois continentes. Os basaltos,
o final da sequência, começaram a se formar justamente quando teve início essa
separação.
Na década de 1980, o DNPM identificou as formações geológicas da
coluna estratigráfica com dezessete marcos de concreto fixados junto à estrada
(será que ainda existem?). O marco 1 foi colocado na cidade de Lauro Müller, a
200 m de altitude. O marco 17, lá em cima, 17 km adiante, no topo dos derrames basálticos,
a 1.400 m de altitude.
No meio desse trecho, havia até um Museu Geológico, que uma
chuvarada destruiu e que não foi reconstruído.
O ponto onde a estrada passa de rodovia muito sinuosa para a
categoria de pirambeira, tornando-se
muito mais íngreme, marca o início do intervalo de basaltos, rochas vulcânicas
que, por serem mais resistentes à erosão, deixam o perfil da serra muito mais
escarpado. Esses basaltos continuam aflorando até terminar a subida.
Este é o trecho onde é mais difícil dirigir. Mas, em compensação,
é o que pode fazer a alegria dos colecionadores de minerais.
Ele é composto por uma sucessão de derrames de lava e cada um desses
derrames tem na sua parte superior, uma associação de minerais muito
interessantes para coleção.
Para a pavimentação, a estrada precisou ser alargada em vários
pontos e, com isso, em muitos lugares podiam-se obter amostras muito boas de
minerais variados. Tive o privilégio de passar por ali em 1981, logo depois de
a estrada ser pavimentada e vivi uma das minhas melhores experiências de
colecionador. Foi bom demais!
Vi um derrame que continha cristais de ametista, heulandita,
calcita e escolecita. Logo adiante, outro derrame, este com quartzo enfumaçado,
heulandita, calcita, laumontita, ametista, cristal de rocha e obsidiana. Após mais 1,7 km de estrada, escolecita,
estilbita e laumontita.
Eu estava sozinho e queria muito compartilhar aquelas descobertas.
Mas, como e com quem? O jeito que achei
foi pegar uma lata de tinta spray que tinha no carro e escrever, abreviadamente,
na mureta da estrada, os minerais que encontrava em cada ponto (HEU para heulandita,
EST para estilbita, etc.). Por serem abreviaturas, eu sabia que das pessoas que
viessem a ler, talvez só os geólogos entendessem. Mas, foi a maneira que achei
de compartilhar a emoção das descobertas. Foi também minha única atuação como
pichador em toda a minha vida. E não me
arrependo, porque a causa era nobre.
Outra vez, encontrei naquela estrada uma drusa de ametista e
fiquei na dúvida se a trazia ou não, pois os cristais eram bonitos, mas o
conjunto, bem pesado. Acabei deixando lá, mas marquei bem o lugar para achá-la se
viesse a me arrepender. Arrependi-me mesmo, mas alguns meses depois subi a
serra, num dia horrível, frio e com chuvisco. Quando cheguei àquele local, desci
e encontrei a drusa exatamente onde a deixara. Em menos de um minuto, eu estava
de volta ao carro com ela.
Assim é a serra do Rio do Rastro, cheia de surpresas,
encantamento, descobertas e emoção.
Leiam abaixo oportunos comentários feitos pela minha colega geóloga Lúcia Ayala.
ResponderExcluirTem mais uns ‘equívocos’ gerados pelo governador Amin que surgiram ali e não chegaste a registrar.
E também um erro geológico para o qual passaste recibo: a formação geológica pré Botucatu se chama ‘Rio do Rasto’, e não Rio do Rastro!!
E leva este nome por que este era o nome do Rio Tubarão na sua nascente.
E essa estrada foi chamada de ‘Serra do Rio do Rasto’ até a época da pavimentação do Amin. Aí ele batizou a serra de “Rio do Rastro”, escreveu isso na placa, e todo mundo aceitou.
Aliás, todo mundo não, porque a Associação dos Historiadores do Estado de Santa Catarina (não sei bem o nome formal) mandou publicar nos jornais da época um protesto a esse desrespeito com a história do Estado. Não adiantou nada, pois o Amin não ia mudar a placa só por que estava agredindo a história regional. E ficou ‘Rastro’ no lugar do ‘Rasto’ original.
E dos 17 marcos, pelo menos 2 já sumiram. Um deles, referenciando uma exposição de sedimentos arenosos marinhos do Rio Bonito, ficava na frente de um restaurante na subida da estrada. Há muito tempo atrás levei uma turma de alunos num trabalho de campo e, dando pela falta do marco, perguntei ao dono do restaurante se ele sabia o que havia acontecido. Ele me disse que aquele marco atrapalhava o acesso dos carros ao seu restaurante, então ele tirou e jogou lá num canto. E, de mais a mais, o marco não serviria de muito mesmo porque ele foi ‘obrigado’ a remover boa parte do afloramento porque precisava mais espaço para estacionamento.
E bem antes da chuvarada destruir o museu ele já havia sido roubado em quase todas as suas amostras de rochas e não havia mais nenhum fóssil.
Não conheço o lugar, mas fiquei impressionada com a narração.
ResponderExcluirVi toda a beleza e encantamento por meio de suas palavras.
acho que é uma verdadeira aventura transitar por esta estrada: quem sabe um dia o farei.
obrigada!
Katia, antes de conhecer a serra do Rio do Rastro, eu fiquei impressionado com ela por um simples cartão postal que recebi. Aquela sucessão de curvas tão fechadas me fez decidir na hora que haveria de conhecer aquele lugar.
ExcluirImagine só se em vez de um simples postal eu houvesse recebido uma descrição assim... Eu iria para lá no dia seguitne... :-)