Assim como a praia da Joaquina, em
Florianópolis, sobre a qual falamos em texto aqui publicado dia 9 de janeiro
deste ano, as praias gaúchas de Torres são uma aula de Geologia a céu aberto.
Também ali são duas as rochas que
afloram, só que diferentes daquelas da Joaquina. Lá, a gente vê granito e diabásio; aqui, a gente vê basalto
e arenito.
O arenito
O arenito é uma rocha sedimentar formada
pela deposição e compactação de areia (grãos de minerais medindo 0,125 mm a 2
mm de diâmetro). O arenito de Torres tem cor marrom-clara a rosada (foto
abaixo) e, como a imensa maioria dos arenitos é formado por grãos de
quartzo.
A areia que se deposita e depois se
torna um arenito pode ser transportada por um rio, pelo mar ou pelo vento. O
arenito de Torres é daqueles cuja areia veio trazida pelo vento (arenito eólico). Como se sabe isso? Pela
maneira como se distribuem suas camadas. Elas têm certa inclinação num ponto,
mas logo acima a inclinação é outra, e para os lados também mostra inclinação
(que os geólogos chamam de mergulho)
e direção variáveis (próxima foto). Essas mudanças caracterizam a chamada estratificação cruzada e são consequência
das mudanças na direção do vento à época da deposição da areia. Se a areia
tivesse sido depositada por um rio, também mostraria estratificação cruzada,
mas ela seria bem diferente (estratificação
cruzada acanalada).
Além disso, os grãos de quartzo do arenito eólico não têm
brilho porque o atrito de uns contra os outros, no ambiente desértico, sem
água, os deixa foscos.
Torres faz parte de uma grande
porção da América do Sul que era um vasto deserto nos períodos Triássico (251 a
200 milhões de anos atrás), Jurássico e início do Cretáceo (145,5 até 65,5 milhões de anos atrás). E deserto bem típico: arenoso, quente, seco e sem
vida. O arenito que ali se vê é chamado pelos geólogos de Formação Botucatu ou Arenito
Botucatu, porque foi descrito pela primeira vez no município desse nome, em
São Paulo.
A compactação das areias do antigo
deserto formou uma rocha muito porosa e permeável. Por isso, ela absorve muita água,
água esta que, através de poços tubulares, pode ser aproveitada facilmente.
Rochas assim, que armazenam e fornecem água com facilidade,
chamam-se aquíferos. Já ouviram falar
no Aquífero Guarani, a vasta reserva de água subterrânea existente na América
do Sul, principalmente no sul do Brasil?
Pois apraz-me me informar-lhes que o Arenito Botucatu é a principal
rocha desse famoso aquífero, que é o maior e melhor do Brasil.
Um furo de sonda feito pela CPRM (Companhia de Pesquisa
de Recursos Minerais) 2,5 km ao norte da cidade mostrou esse arenito com 40 metros de
espessura.
O basalto
O basalto é uma rocha vulcânica, formada pelo
resfriamento e solidificação de lava e é composto basicamente de cristais de
piroxênio e plagioclásio.
Lava é o
magma que chegou à superfície. Nessas condições, ele resfria muito depressa,
por isso os grãos desses minerais são muito pequenos, invisíveis a olho nu, ao
contrário dos cristais de feldspato e quartzo que formam o granito da praia da
Joaquina. O granito provém de magma que resfriou no interior da costa
terrestre, lentamente, a quilômetros de profundidade.
O basalto tem a mesma composição do diabásio
que se vê na Joaquina, mas as duas rochas diferem no ambiente de formação: ambas são
rochas ígneas, mas o diabásio formou-se por resfriamento e consolidação de magma
dentro da crosta, não na superfície como o basalto. O basalto é, portanto, uma
rocha ígnea extrusiva e o diabásio,
rocha ígnea intrusiva.
Este basalto, chamado pelos geólogos
de Formação Serra Geral, ocupa toda a
metade norte do Rio Grande do Sul, mais de metade do Estado de Santa Catarina, uns
50% do Paraná, partes de São Paulo, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Uruguai,
Paraguai e Argentina. Estende-se por nada menos de 1,2 milhão de quilômetros
quadrados, uma das maiores, se não a maior extensão de basalto continental do
mundo todo. Ele começou a formar-se há 120 milhões de anos, no período
Cretáceo, quando a América do Sul e a África começaram a se separar. Houve a
fragmentação de um protocontinente que reunia todas as massas continentais do
planeta, de nome Pangeia, cercado por
um único mar, chamado Pantalassa. O
vulcanismo cessou há 100 milhões de anos, mas essa separação continua ocorrendo ainda hoje, alguns centímetros por ano.
Na fragmentação do antigo continente
único, formaram-se grandes fendas, por onde saía a lava basáltica. O basalto é
assim, ele não extravasa através de cones vulcânicos, mas sim de grandes
fendas, chamadas pelos geólogos de geóclases.
A cicatriz de uma dessas grandes fendas ainda é visível e passa exatamente por
Torres, estendendo-se até Posadas, na Argentina. Ela é chamada pelos geólogos
de Lineamento Torres-Posadas.
O contato arenito / basalto
O interessante na praia de Torres
não é a simples presença das duas rochas, mas o fato de elas estarem em contato
direto uma sobre a outra. Isso pode ser visto na praia da Guarita, na Torre Sul
e na parte sul da Torre do Centro.
Havia como foi dito, um vasto deserto arenoso. A lava
veio e se espalhou sobre a areia. Por isso, é possível ver, na zona de contato,
alterações no arenito, promovidas pelo calor da lava. A foto abaixo mostra o
arenito rosado sob o basalto cinza. Os pedaços de rocha menores são de basalto
também.
Nas fotos a seguir, o arenito, devido ao calor da lava, mostra-se
mais compacto e mais difícil de quebrar e com cor também algo diferente.
A próxima foto mostra também o arenito Botucatu (parte
inferior) em contato com rochas vulcânicas da Formação Serra Geral, mas em
outro contexto. São lajotas de uma calçada existente ao lado do Supermercado
Zaffari Higienópolis, em Porto Alegre.
Nos fundos do mesmo supermercado, pode-se ver o arenito
num muro e na calçada, nesta com cor mais escura, devida à sujeira acumulada ao
longo do tempo.
Como o ambiente desértico persistiu ainda durante um
tempo após o início do vulcanismo, e como a lava basáltica se depositava em
derrames que se sucediam com intervalos de duração variável, pode-se ver, em
vários pontos do estado, camadas de arenito entre duas massas de basalto.
As fotos aqui exibidas foram tiradas
na praia da Guarita, dentro do Parque Estadual da Guarita. Pode-se observar, na
imagem abaixo (esta da Wikipédia), que os basaltos mostram fraturas na direção
vertical.
Isso é comum na parte central e mais espessa de um
derrame de basalto e a tendência, por isso, é blocos se soltarem e caírem. Aliás,
a foto a seguir mostra exatamente isto: um bloco de basalto caído sobre o
arenito da base da torre da Guarita.
Este basalto que se vê em Torres é a
rocha da qual se extrai enorme quantidade de ágata e de ametista no Rio Grande
do Sul, a ponto de tornar esse estado o maior produtor mundial das duas pedras
preciosas. Infelizmente, ali, nas praias de Torres, elas não são vistas.
O outro lado de Torres
Se juntarmos o mapa da América do
Sul com o da África, veremos que eles se encaixam de modo surpreendente. Segundo
o pesquisador Ruy Rubem Ruschel, o ponto onde hoje é Torres estava unido ao
atual cabo Cruz, na Namíbia, que ele chamava de o outro lado de Torres. E assim
como Torres é o único ponto do litoral brasileiro aonde os basaltos chegam até
à praia, cabo Cruz, afirma ele, é o único ponto do litoral africano onde isso
ocorre.
Na Namíbia, o basalto é chamado de Formação Drakensberg e o arenito, de Arenito Cave.
Os mapas abaixo mostram a enorme semelhança da costa
brasileira com a costa ocidental africana. No mapa da direita, uma ampliação do
outro, Torres fica onde aparece o nome da pequena (3.800 habitantes) cidade de Karibib,
no mapa da Namíbia.
A cidade de Torres está no paralelo
29º 20’, que passa pelo extremo sul da Namíbia, fronteira com a
África do Sul. Isso mostra que, supondo que a África tenha permanecido imóvel, a
América do Sul, ao se separar dela, teria feito um movimento para Sudoeste,
girando no sentido horário. Dados atuais mostram que hoje o deslocamento do nosso
continente é para Oeste (4 mm/ano) e, sobretudo, para o Norte (14 mm/ano).
A propósito, em 2001 a artista
plástica sul-africana Georgia Papageorge realizou uma instalação em que, uma
série de bandeiras enfileiradas instaladas na praia em Torres continuava com
bandeiras iguais instaladas na África, no ponto outrora unido ao daqui. Nesse
projeto, chamado Africa Rifting – Lines
of Fire. Namibia/Brazil, as bandeiras de Torres foram instaladas no dia 11
de setembro de 2001 (sem saber, conta ela, que, naquela dia, os Estados Unidos
sofriam os tristemente famosos ataques da Al Qaeda).
Abaixo, as bandeiras de Georgia na costa africana. A foto
mostra apenas as areias do deserto da Namíbia, na costa do Esqueleto. Nada dos
basaltos citados por Ruschel. Quem está certo, ele ou Georgia? Troquei e-mails com Georgia Papageorge em
2001 e 2002, mas não a conheço. Já Ruy Ruben Ruschel conheci bem e até
escrevemos um artigo de História juntos. Por isso, em princípio acredito nele.
Torres hoje
Cessado o vulcanismo, Torres e todo
o litoral gaúcho foram palco de vários avanços (transgressões) e recuos (regressões)
do mar. Atualmente, estamos numa fase de regressão marinha, iniciada há 2.000
anos. Essa é a razão de haver tantas lagoas no litoral do Rio Grande do Sul,
inclusive dentro da cidade de Torres.
Finalizando, convido os amigos a dar
uma olhada mais cuidadosa nas rochas de Torres quando forem tomar um banho de
mar naquela cidade. E lembrem: a distante África já esteve coladinha à mais
bela praia gaúcha.
Basaltos como os daqui e outras rochas relacionadas à ruptura da Pangeia e formação do oceano Atlântico são vistos no noroeste da Namíbia, no Platô de Etendeka.
ResponderExcluirO mapa mostrando como a América do Suil e a África se encaixam bem foi preparado por mim. Sugiro que façam o mesmo: peguem mapas dos dois continentes que tenham a mesma escala (isso é fundamental), recortem a costa brasileira e tentem encaixar na costa ocidental da África.
Agradeço muito os comentários feitos pelos meus colegas Alfeu Caldasso e Mário Farina, apontando trechos em que a redação estava pouco clara.
ResponderExcluirVárias pessoas já me disseram que não conseguem postar comentários aqui. Eu não consigo é enviar uma mensagem aos seguidores do blog, o que lamento muito.
ResponderExcluirMas quero dizer a todos que aprecio muito tê-los como leitores fieis e que aqueles de quem tenho e-mail são sempre os primeiros a serem avisados quando há uma nova publicação.
Cursei ciências sociais, mas sou apaixonado pelo assunto deriva continental e o derrame basáltico que ocorreu aqui no sul há milhões de anos. O destino da minha família no verão costuma ser SC, mas Torres vem logo a seguir. Agora tenho filho pequeno, mas sempre que podia, andava no morro do Farol, Furnas e o da Guarita e assistia o espetáculo do mar se chocando com o basalto que um dia foi lava e antes, magma. Fascinado pela natureza. Parabéns pelo blog, Pércio! Ricardo, Porto Alegre!
ResponderExcluirObrigado, Ricardo. Sou também apaixonado por Torres, não pelo mar, mas pela aula de Geologia que ali se pode assistir. Um abraço.
ResponderExcluirQue legal saber que agora sei mais da cidade onde vivo, ótimo post!
ResponderExcluirObrigado, Felipi. Você vive numa cidade privilegiada.
ResponderExcluirObrigada pelo seu texto, muitíssimo esclarecedor!
ResponderExcluirObrigado.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQual citação?
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