domingo, 17 de julho de 2011

UMA HISTÓRIA QUE NOS ENVERGONHA



Vou lhes contar uma história feia. Uma história muito feia. História daquelas capazes de deixar qualquer brasileiro sério muito indignado.
Aqui no Rio Grande do Sul, usamos um superlativo muito nosso, o advérbio tri. Ele significa muito ou muitíssimo. Ficar tri indignado, então, é ficar muito indignado ou muitíssimo indignado. Esse tri vem lá da Copa do Mundo de 1970, no México, quando ganhamos o Campeonato Mundial de Futebol pela terceira vez. Ele significa então, etimologicamente, três vezes. Pois a história que lhe vou contra me deixa não tri indignado, mas dodecaindignado. 
 - Dodecaindignado ? 
Já explico. Dodeca- é um prefixo grego que significa doze. Quem estudou Mineralogia, ou pelo menos Cristalografia, ou mesmo os colecionadores de minerais mais experientes devem lembrar que as granadas formam belos cristais de doze faces, chamados dodecaedros (edro significa plano ou face plana).
Por que então eu fico dodecaindignado ? Porque a barbaridade que vou contar me deixa tri indignado como brasileiro; tri indignado como geólogo; tri indignado como colecionador de minerais e ainda tri indignado como dirigente de museu - que não sou mais, mas fui por treze anos. Então, tenho quatro motivos para ficar triplamente indignado, e 4 x 3 ainda são 12, apesar do que se vê em alguns livros de Aritmética editados pelo MEC.
Mas, chega de suspense. Vamos à história.
Quem já ouviu falar em Ilia Deleff provavelmente saberá do que vou falar. Quem nunca ouviu falar nele, que se sente e se prepare para receber uma dose cavalar de indignação.
Ilia Deleff é um búlgaro que, em 1957, aos 36 anos, mudou-se para o Brasil. Desde aquela época, ele começou a andar pelos garimpos brasileiros e, apaixonado pelos belíssimos minerais que neles via, começou a colecioná-los, mas reunindo apenas cristais muito grandes, gigantescos mesmo.
Na década de 1970, Deleff radicou-se em Minas Gerais e em 1982, após 25 anos reunindo cristais enormes que encontrava, tinha uma coleção de 78 cristais fabulosos, variando de 200 kg a 4 toneladas. Era um acervo sem igual no mundo, não só pelo tamanho das peças, mas também por sua beleza. Dessa coleção faziam parte o maior citrino, a maior amazonita azul, a maior morganita e o maior topázio azul conhecidos no mundo. (Abaixo, cristais de quartzo e amazonita da coleção de Deleff, em foto da revista Veja)
Naquele ano, Deleff decidiu vender sua coleção. Ele era búlgaro, já dissemos, mas como os minerais eram brasileiros, quis que a coleção permanecesse no Brasil. Assim, ofereceu o acervo a diversas instituições brasileiras.
Sua proposta era simplesmente irrecusável: ele queria que o pagamento fosse feito apenas com a renda obtida com a exposição da sua coleção. Simples assim. Negócio de pai pra filho.
Pois bem. Ninguém neste vasto Brasil quis comprar uma coleção sem igual no mundo ! Pior: sua proposta foi considerada exótica e recebida com desinteresse, quando não com desprezo !!!
Diante disso, é claro, Deleff ofereceu-a a museus estrangeiros. Aí, naturalmente, a coisa mudou de figura. Surgiram muitos interessados, da Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Japão. A coleção acabou vendida ao Museu de História Natural da França, e hoje quem quiser conhecê-la precisa ir a Paris. (Abaixo, Deleff com parte de sua coleção (Veja).

Agora me digam: é ou não é para ficar tri indignado ?
Mas, isso não é tudo. A coleção de Deleff saiu do Brasil – legalmente, é claro ! – sabem como ? Como simples matéria-prima destinada à indústria, como cristais comuns de quartzo !!!
Não entendo muito de comércio exterior, mas uma pergunta me martela a cabeça sempre que lembro disso: Como é que pode ?!!!
E agora ? Ficaram um pouco mais indignados ?
Pois tem um mais um detalhe para aumentar essa dose de indignação. Deleff, já foi dito, vendeu sua coleção. Ela não foi doada, foi vendida. A França não informa quanto paga por acervos museológicos que seus museus públicos adquirem, mas dá para imaginar que não foi por pouco que a compraram. Pois bem. Por ter feito essa venda, Deleff foi condecorado pelo presidente francês François Mitterrand, em 14.07.1983, com a Ordem Nacional das Palmas Acadêmicas, criada por Napoleão Bonaparte em 1808. Palmas para ele ! Uma vaia para o Brasil !
Quando a coleção foi exposta no Museu Nacional de História Natural, em Paris, a embaixada brasileira recebeu convite para a inauguração da mostra, mas não mandou nenhum representante. Prefiro acreditar que nosso embaixador, pelo menos, sentiu-se envergonhado com o que o Brasil fizera.
Acho que deixei bem claro que Deleff não era nenhum mercenário. Muito pelo contrário. Pois querem mais uma prova ? Em 1985, ele doou – aí, sim, doou - outra coleção de cristais gigantescos, à sua terra natal, a Bulgária. Esta segunda coleção é hoje a maior atração do Museu Nacional Terra e Homem, de Sofia, capital daquele país (vejam em http://omm-online.org/eng/iliadeleff.htm). Entre os minerais brasileiros desse museu, estão três geodos de ametista de 525 kg, 638 kg e 700 kg e um cristal de quartzo enfumaçado de 575 kg (vejam em http://www.earthandman.org/en/guideonenglish.pdf).
Tenho ou não tenho razão para ficar dodecaindignado ? Isso foi ou não foi um atentado contra a cultura brasileira ?
Eu já contei essa história muitas vezes. Contei-a aos muitos alunos que passaram por meus cursos de Gemologia. Contei-a num dos 44 artigos de divulgação científica que escrevi para o Canal Escola (www.cprm.gov.br) e contei-a, sempre com a mesma indignação, na minha coluna de Gemologia no Portal das Joias (www.portaldasjoias.com.br). E continuarei a contá-la pelo resto da minha vida, sempre que tiver oportunidade de fazer isso porque uma história dessas pode ter acontecido só uma vez, mas JÁ FOI DEMAIS ! ISSO NÃO PODE ACONTECER DE NOVO !!!
Fiquei sabendo da coleção de Deleff e de sua venda para França em 1983, em reportagem da revista Veja (edição de 23 de março, p. 54-55). Na semana seguinte, a mesma revista noticiou (p. 81) a condecoração de Deleff. Desde então, tenho procurado conhecer mais detalhes sobre o assunto e cada nova informação que obtenho só confirma a barbaridade que se cometeu.
Por isso, peço uma coisa: se alguém souber de algum detalhe dessa história que eu não mencionei e que possa diminuir um pouco a indignação que sinto, por favor me conte. Se a coleção não era lá essas coisas (duvido muito !), se a proposta de Deleff não era assim tão vantajosa, se a recusa das instituições brasileiras foi baseada em bons motivos, se souberem enfim de qualquer atenuante para o papel tão feio que o Brasil fez nessa história, por favor me contem. Me ajudem a dormir mais tranquilo.
Agora, se souberem de alguma coisa que torne essa história feia mais feia ainda, peço que me poupem. Não vou aguentar saber que tudo aconteceu de um modo ainda pior do que contei aqui !


7 comentários:

  1. Pois é Pércio, o Brasil me envergonha e não é de hoje viu?

    ResponderExcluir
  2. É verdade, Marise. Mas, ir embora não é solução. A gente tem é que ficar e botar a boca no trombone. Ou, se possível, desentortar o que estiver ao nosso alcance.

    ResponderExcluir
  3. Oi Pércio, quem fez um papel feio não foi o Brasil. Foi o governo que represetava o Brasil naquela época. Eu sei que você tem toda razão em se indignar. Porém isto parece ser um atenuante, ou não é?
    Acho que, o que aconteceu é uma questão cultural mesmo. O brasileiro em geral tende a não valorizar as suas riquezas naturais. Talvez mesmo por serem elas tantas... Acho, sinceramente que hojetalvez as atitudes fossem diferentes, não? Creio que os brasileiros estão discutindo mais, enxergando mais e reclamando mais, muitas coisas como essa e, diga-se de passagem, com razão! Quem sabe um dia poderemos ter essa coleção de volta, talvez a peso de ouro mas, como se diz, quem não tem cabeça tem que ter pernas para trabalhar mais e recuperar o que foi perdido seja o tempo, sejam os minerais. Tenho esperança de que dias melhores virão... Quem sabe?
    Beijos,
    Jane.

    ResponderExcluir
  4. Oi Pércio, é bom saber que não abandononaste a área. Ainda bem que temos a capacidade de nos indignarmos e anunciarmos a todos nosso descontentamento.
    Abraço

    ResponderExcluir
  5. Geneci, museus e Geologia são paixões para o resto da vida. Se puder juntar os dois, então, mais ainda.
    Às vezes, a gente tem umas decepções. Já estive duas vezes em Paris e ainda não pude ver a Coleção Deleff. Na primeira vez, não pude nem ir ao Museu; na segunda, fui, mas a seção de minerais estava temporariamente fechada.
    Um abraço.

    ResponderExcluir
  6. Jane, é, sim, uma questão de conscientização. É preciso educar, esclarecer e conscientizar desde o garimpeiro até o ministro de Minas e Energia. Já consegui peças belíssimas para minha coleção e para o Museu de Geologia no rejeito de garimpos, mas hoje eles já não põem fora tanta coisa bonita como faziam até uns dez anos atrás (o que me deixa satisfeito como geólogo e cidadão, mas triste como colecionador).
    Quanto a obtermos de volta a Coleção Deleff, esqueça... Se estivesse em um museu particular, talvez houvesse uma possibilidade, mas não estando em um museu público.

    ResponderExcluir