A intensa e prolongada onda de frio que vem assolando o Sul do Brasil neste inverno de 2011 fez o povo daqui viver algumas situações inusitadas.
Pinguins-de-magalhães que costumam chegar às praias gaúchas nesta época e aqui são auxiliados em sua exaustiva viagem rumo a águas mais quentes, precisaram ser aquecidos, porque fazia frio demais até para eles.
Condicionadores de ar, que na maior parte do Brasil são usados apenas para refrigerar os ambientes, mas que aqui são usados também para aquecer, vêm tendo uso intensivo, é claro, e já está havendo uma onda de panes nesses aparelhos.
Uma grande loja de vestuário de Porto Alegre, que no inverno costuma vender quatrocentos sobretudos por mês, chegou a vender quase duzentos deles em um único dia.
Em trechos de estradas situados em altitudes maiores, houve formação de gelo na pista, pondo em risco a segurança de motoristas e passageiros e obrigando as autoridades de trânsito a colocar sal no asfalto.
Em Santa Catarina, Edicarlos Bezerra Farias, foragido da penitenciária de São Pedro de Alcântara, ligou para a Polícia Militar dizendo que queria voltar para a prisão, pois não aguentava mais o frio das ruas.
No dia 11 de julho, segunda-feira, em várias cidades do Rio Grande a temperatura mínima foi mais alta que as máximas registradas nas mesmas cidades na segunda-feira anterior.
A cidade de Quaraí, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, separada por apenas um rio da uruguaia Artigas, teve presença surpreendente nos noticiários, por conta de temperaturas vários graus abaixo de zero, registradas durante muitos dias, em vários dos quais ali ocorreu a temperatura mínima do estado.
De todos os fatos acima, o que menos me surpreendeu foi este último. No inverno de 1996, eu estava lá em Quaraí, dando início aos trabalhos de campo do Projeto Pedras Preciosas RS/SC e me hospedei num hotel bem simples, mas que era o melhor da cidade na época (hoje há pelo menos um bem melhor).
Na primeira noite, não consegui dormir, pois o frio era muito intenso e, pior, entrava vento pelas frestas da janela. Eu só conseguia me aquecer direito tapando a cabeça. Mas, aí havia um problema: eu não consigo dormir com o rosto tapado. Pode haver uma montanha de cobertas sobre mim, mas no rosto não pode haver nada. Resultado: passei toda a noite ora tapando o rosto porque sentia frio, ora destapando porque as cobertas me incomodavam.
Em Artigas, no outro lado do rio Uruguai, havia um hotel que parecia ser bem melhor. Bastava vê-lo por fora para ter certeza de que ali pelo menos eu não teria vento entrando pelas frestas da janela. Mas, Artigas não era Brasil, era Uruguai. Será que eu poderia incluir na minha prestação de contas uma despesa feita em outro país, mesmo sendo Artigas separada do Brasil apenas por uma ponte?
Na dúvida sobre isso, mas certo de que o hotel de Quaraí era um risco à minha sobrevivência, liguei para Porto Alegre, expus ao meu chefe a situação e perguntei se poderia apresentar uma nota fiscal de um hotel do Uruguai. Ele me respondeu que achava que não, mas que ia verificar. Liguei de novo mais tarde e ele me disse que não só eu não podia apresentar comprovante de despesa feito em outro país como eu precisava de uma autorização do Ministro de Minas e Energia para entrar ao Uruguai, mesmo que para isso bastasse atravessar o rio.
- Ah, sim, respondi, diga a ele então que se precisar falar comigo estarei no Uruguai.
Não aceitar a nota fiscal uruguaia, tudo bem; mas impedir que eu entrasse no país vizinho, onde a única barreira entre Brasil e Uruguai é o rio, não se fazendo qualquer tipo de exigência burocrática para ir e vir, era demais. Até porque a Geologia e os depósitos de gemas de Quaraí se estendem Uruguai adentro e podia ser importante pelo menos dar uma passada pelas estradas de lá próximas à fronteira (de fato, visitei uma mina de ametista em Catalán, no Departamento de Artigas).
Mas, o importante mesmo era o hotel, e meu chefe, que sabia bem o que era trabalho de campo sem conforto, me autorizou a ficar no hotel do Uruguai.
- Se é como você diz, fica lá. Traga a nota que depois a gente vê como faz.
Não lembro qual foi a solução adotada. Mas, sei que para aquele hotel da primeira noite eu não precisei voltar.
Bem, eu disse que o hotel do Uruguai oferecia mais conforto para dormir. E era verdade. Mas, na manhã seguinte, tive uma surpresa desagradável.
Serviram café, leite, pão e manteiga. E só. Já me haviam dito que na zona da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul a primeira refeição não é das mais ricas, mas aquele café não podia ser mais franciscano. Tudo bem, não reclamei. Acontece, porém, que servido o café, o empregado do hotel sumiu e não voltou mais. Eu quis pedir mais pão, chamei, bati com a faca no pires, bati palmas e nada. Eu era o único hóspede tomando café e o uruguaio, por certo, tinha voltado pra cama...
Não é fácil ser geólogo ...
P. S. Eu nasci em casa, uma construção de madeira simples, na zona rural (me lembrem disso se um dia eu ingressar em um partido político e for candidato a qualquer coisa). Ouvi de minha mãe, certa vez, que, naquela noite de maio, o vento que entrava pelas frestas era tão frio que ela mesma pediu que alguém pusesse um casaco sobre as costas do médico que fez o parto. Esse médico, Dr. Danilo Davi, tornou-se meu padrinho de batismo.
Amigo Pércio, não sei como está agora, mas eu falo dos anos 90 até 96, não apenas na fronteira do Brasil os hotéis dos países vizinhos servem café franciscano... Nas capitais também. Abraços!
ResponderExcluirMarise
É mesmo ? Acho que os imigrantes alemães e italianos nos deixaram mal acostumados e exigentes...
ResponderExcluirQuando trabalhei no interior da Bahia, eu sentia muita falta de algo doce no pão, pois o café da manhã só tinha carne, ovos e manteiga do sertão. Comecei a incluir geleia na minha bagagem...
Vento entrando por frestas na janela realmente é um grande incômodo durante o inverno. Não é à toa que em alguns lugares eu já vi preencherem frestas usando estopa saturada com cola.
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