Concluí meu curso de Geologia em 1970, numa época em que
não estava muito fácil conseguir emprego. Os anos seguintes, porém, me
mostrariam que eu era feliz e não sabia. Na década de 1980, muitos geólogos recém-formados
simplesmente desistiram da profissão e foram fazer outra coisa, tão fechado
estava o mercado de trabalho.
Nos
seis meses que transcorreram entre minha formatura e o início efetivo de minha
carreira profissional, apareceram algumas oportunidades de emprego, mas a que
eu mais desejava não se concretizou. Outra, menos interessante, também não.
Acabei indo trabalhar como geólogo de mina em Caçapava do Sul (RS), nas Minas
do Camaquã, duas minas, uma ao lado da outra, de onde se extraía minério de
cobre.
Antes
de aceitar a oferta de trabalho lá, a minha total inexperiência profissional me
fazia ver aquele emprego como algo menor, um cargo que não me daria nenhum
prestígio. Mas, como as outras opções não se confirmavam, resolvi aceitar. Além
de ser bem remunerado, eu continuaria morando no meu estado, o que considerava
desde sempre uma possibilidade muito remota.
O
trabalho de geólogo de mina, porém, viria a se mostrar uma grande e
gratificante surpresa. Tão gratificante que uma semana após ter iniciado minha atividade lá a empresa aquela em que eu mais queria trabalhar chamou-me para
assumir, e eu recusei.
A
imagem de emprego de pouco prestígio logo começou a se desfazer. De fato, as
Minas do Camaquã eram o único local no estado onde havia lavra de minério
metálico e um dos poucos no país onde se produzia minério de cobre.
Barragem onde era captada água para
abastecimento residencial e industrial da mina
e onde muitas vezes fui pescar
Hotel dos Pampas, onde se hospedavam
os visitantes e onde moravam os técnicos
de nivel universitário solteiros
Mas, o mais importante é que o trabalho ali
era totalmente diferente de tudo que me fora ensinado na Universidade. Talvez
outros geólogos se sentissem frustrados ou revoltados ao constatar que tinham
pela frente um trabalho para qual nunca haviam sido preparados. Eu, porém, vi
isso de modo positivo: os treze meses que lá trabalhei foram um ano adicional
de curso universitário.
A
Escola de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul formava alunos
principalmente para mapeamento geológico, e isso eu fiz na mina. Mas, com uma
enorme diferença. Acostumado a lidar com mapas em escalas 1:50.000, 1:100.000
ou 1:250.000, fui fazer mapas em escala 1:250 !
Era um grau de detalhe que eu simplesmente não imaginava pudesse
existir.
Mas,
não era só isso. Fui fazer mapa geológico no subsolo, outra tremenda novidade. Eu
sabia era caminhar subindo e descendo morros ou percorrendo estradas de carro.
Fazer mapa geológico de uma galeria era algo completamente inusitado. Inusitado
e complicado.
O
trabalho começava no dia anterior, quando se pedia ao capataz da mina que
mandasse lavar a galeria ou travessa a ser mapeada, pois sem isso, o pó não
permitia ver quase nada da rocha e dos filões de minério. Para o mapeamento,
além do equipamento básico de segurança (botas de borracha, macacão, capacete e
lanterna, esta com uma bateria de 2 kg presa à cintura), levava-se uma
prancheta com o mapa topográfico do trecho a ser mapeado e sobre ele, uma lâmina
plástica incolor para protegê-lo da água. Para desenhar no mapa, usavam-se
lapiseiras preta, azul, vermelha e verde. Eram necessários ainda fita métrica
e, é claro, martelo de geólogo. Não lembro se havia caderneta para anotar
descrições, mas folhas em branco na prancheta pelo menos devia haver.
Na
Escola de Geologia da UFRGS, já na época um dos melhores cursos do país, eu
aprendera que havia vários tipos de sonda: sonda manual, sonda rotary, etc. Mas
nunca nos foi mostrado nenhuma delas, a não ser no papel, em apostilas. Pois
nas Minas do Camaquã fazia parte da minha rotina acompanhar o trabalho de
sondagem para pesquisa de cobre. E, como a sondagem era feita por uma empresa
contratada, eu, que pela primeira vez na vida estava vendo uma sonda funcionar,
ironicamente tinha a responsabilidade de fiscalizar esse trabalho, que era
conduzido por um geólogo de grande experiência nessa área. E um geólogo, vejam
só, que trabalhava justamente para a empresa aquela em que eu tanto quis
trabalhar, mas cujo convite acabei recusando. A sondagem foi, então, meu
segundo grande aprendizado nas Minas do Camaquã.
Eu disse que saíra
da universidade conhecendo sonda apenas em apostilas. Mas, havia outro tipo de
sondagem que nem mesmo em livros ou apostilas me haviam mostrado: a sondagem de
subsolo. Jamais imaginara que lá em baixo, nas galerias, fossem realizados
também furos de sonda. Pois eram, e coube a mim até planejar toda uma campanha
de furos de sonda desse tipo.
Houve, por fim, mais
um importante aprendizado extra: fazer cálculo de reservas, a partir dos dados obtidos
com os furos de sonda. Foi mais um grande aprendizado.
O trabalho como
geólogo valeu, como eu disse, por um ano adicional de curso universitário. Mas
houve ainda um “curso de extensão”. Foi no setor de tratamento de minério. Não
era atribuição minha, mas era inevitável o contato com essa atividade, até porque
havia grande convívio com os engenheiros que lidavam com ela.
O minério que saía
das minas passava por várias etapas de britagem e ia depois para a flotação.
Dali saía um concentrado com 30% de cobre, que era enviado de caminhão e, a
seguir, de trem para o estado de São Paulo, onde estava a metalurgia do grupo.
Lá se extraía o cobre metálico.
Era interessante conhecer
o que acontecia com a calcopirita e a bornita, tão bonitas, que a mina
fornecia, até porque, quando acompanhávamos alguém em visita às minas, o
roteiro incluía sempre essa etapa de tratamento do minério.
Eu disse que a bornita
e a calcopirita eram bonitas? Pois bem, no
engenho, os dois minerais, com suas cores tão vivas, eram transformados numa
massa pastosa, sem graça, cinza-esverdeada. Muito mais rica em cobre, mas sem
nada da beleza original.
Mina Uruguai hoje, com reservas esgotadas
No prédio branco do centro da foto
ficava minha sala de trabalho
As Minas do
Camaquã, como já disse, eram duas: a Mina São Luiz, com minério representado
principalmente por calcopirita, que ocorria num veio de comportamento bem definido
e previsível, e a Mina Uruguai, onde eu trabalhava, rica principalmente em
bornita (mineral com teor de cobre maior que o da calcopirita), mais disseminada
do que em veios. Ficavam a poucas centenas de metros de distância uma da outra
e em ambas a lavra era subterrânea (mas passou a ser a céu aberto na Uruguai,
anos depois).
Na Mina Uruguai, a
lavra ocorria, naquela época, a 250 m de profundidade, e chegava-se até lá por
um plano inclinado, caminhando. Nada de elevador, como na mina vizinha. Voltar
à superfície exigia, é claro, um bom preparo físico, coisa fácil para os
mineiros, que desciam e subiam todos os dias. Já para geólogos e engenheiros
era um desafio, e eu era dos poucos que conseguiam subir sem parar no meio do
caminho para recobrar o fôlego.
Entre as duas minas, havia outro corpo de minério, chamado Zona
Intermediária, onde predominava a calcocita (mais rica em cobre que a bornita e
a calcopirita) e minerais oxidados, como malaquita e crisocola. Neste local, a
lavra era intermitente e a céu aberto e costumava ser feita quando o teor do
minério proveniente das outras minas por alguma razão sofria redução. geográfico da região das Minas do Camaquã
Cine Rodeio
As Minas do Camaquã me propiciaram outras alegrias além de um rico aprendizado profissional. Como colecionador de minerais, eu me deliciava vendo a enorme quantidade de bornita, calcopirita, malaquita, pirita, crisocola e, em menor quantidade, calcocita e outros minerais que lá havia. Enquanto o trabalho de mapeamento geológico pode nos fazer passar dias ou semanas sem ver um único mineral que valha a pena acrescentar à coleção, ver belos minerais era ali parte da minha rotina diária.
Trabalhei na Mina
Uruguai treze meses. Teria ficado muito mais tempo talvez, não fosse a atitude discriminatória
que teve uma vez comigo o administrador das minas. Eu era jovem e a vida ainda
não me ensinara a ser tolerante e flexível como sou hoje nas relações
profissionais. Não me arrependo, porém, e lembro com satisfação do muito que lá
aprendi durante meu “5º ano de universidade”.
Artigo publicado originalmente na
revista In The mine, nº 48, 2014.
Créditos
das Fotos
Mina Uruguai - Joao Carlos Ebone
Outras – Pércio de Moraes Branco
Um dos engenheiros de minas que trabalharam nas Minas do Camaquã na mesma época que eu foi Nelsir Antônio Zonta. Era um técnico muito dinâmico e o mais entusiasmado de todos com o trabalho na mina.
ResponderExcluirComo perdi o contato com ele há muito tempo, procurei-o agora pela internet. Não gostei do que descobri: o Zonta faleceu há 10 anos pelo menos e hoje é nome de rua em Caçapava do Sul. Justa homenagem, sem dúvida.
Fiquei sabendo hoje do recente falecimento de outro engenheiro de minas que trabalhou nas Minas do Camaquã na mesma época que eu Trata-se do meu grande amigo, meu colega também no curso Científico, em Passo Fundo, Paulo Nerci Gobbi. Ele residia em Gramado, mas estava em Goiânia, onde reside a família de sua esposa.
ResponderExcluirO Gobbi era um sujeito muito inteligente e muito culto e lembro bem de uma noite em que ele e o Abílio, um dos médicos das minas, ficaram longo tempo discutindo a obra de Bach.
Lamento saber que ele não estará presente no reencontro da turma do Cenav de 1965 que estamos pretendo realizar.
Vai em paz, amigo !
Percio, seu blog é muito bom. Conteúdo maravilhoso!
ResponderExcluirtenho 19 anos, irei cursar geologia e você esta sendo uma inspiração maravilhosa. Abraços!!!