quinta-feira, 27 de março de 2014

NASCE UM GEÓLOGO


            Concluí meu curso de Geologia em 1970, numa época em que não estava muito fácil conseguir emprego. Os anos seguintes, porém, me mostrariam que eu era feliz e não sabia. Na década de 1980, muitos geólogos recém-formados simplesmente desistiram da profissão e foram fazer outra coisa, tão fechado estava o mercado de trabalho.
            Nos seis meses que transcorreram entre minha formatura e o início efetivo de minha carreira profissional, apareceram algumas oportunidades de emprego, mas a que eu mais desejava não se concretizou. Outra, menos interessante, também não. Acabei indo trabalhar como geólogo de mina em Caçapava do Sul (RS), nas Minas do Camaquã, duas minas, uma ao lado da outra, de onde se extraía minério de cobre.
            Antes de aceitar a oferta de trabalho lá, a minha total inexperiência profissional me fazia ver aquele emprego como algo menor, um cargo que não me daria nenhum prestígio. Mas, como as outras opções não se confirmavam, resolvi aceitar. Além de ser bem remunerado, eu continuaria morando no meu estado, o que considerava desde sempre uma possibilidade muito remota.
            O trabalho de geólogo de mina, porém, viria a se mostrar uma grande e gratificante surpresa. Tão gratificante que uma semana após ter iniciado minha atividade lá a empresa aquela em que eu mais queria trabalhar chamou-me para assumir, e eu recusei.
            A imagem de emprego de pouco prestígio logo começou a se desfazer. De fato, as Minas do Camaquã eram o único local no estado onde havia lavra de minério metálico e um dos poucos no país onde se produzia minério de cobre. 

                                       Barragem onde era captada água para 
                      abastecimento residencial e industrial da mina
                                 e onde muitas vezes fui pescar

                                   Hotel dos Pampas, onde se hospedavam
                           os visitantes e onde  moravam os técnicos
                                   de nivel universitário solteiros



          Mas, o mais importante é que o trabalho ali era totalmente diferente de tudo que me fora ensinado na Universidade. Talvez outros geólogos se sentissem frustrados ou revoltados ao constatar que tinham pela frente um trabalho para qual nunca haviam sido preparados. Eu, porém, vi isso de modo positivo: os treze meses que lá trabalhei foram um ano adicional de curso universitário.

            A Escola de Geologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul formava alunos principalmente para mapeamento geológico, e isso eu fiz na mina. Mas, com uma enorme diferença. Acostumado a lidar com mapas em escalas 1:50.000, 1:100.000 ou 1:250.000, fui fazer mapas em escala 1:250 !  Era um grau de detalhe que eu simplesmente não imaginava pudesse existir.

            Mas, não era só isso. Fui fazer mapa geológico no subsolo, outra tremenda novidade. Eu sabia era caminhar subindo e descendo morros ou percorrendo estradas de carro. Fazer mapa geológico de uma galeria era algo completamente inusitado. Inusitado e complicado.

            O trabalho começava no dia anterior, quando se pedia ao capataz da mina que mandasse lavar a galeria ou travessa a ser mapeada, pois sem isso, o pó não permitia ver quase nada da rocha e dos filões de minério. Para o mapeamento, além do equipamento básico de segurança (botas de borracha, macacão, capacete e lanterna, esta com uma bateria de 2 kg presa à cintura), levava-se uma prancheta com o mapa topográfico do trecho a ser mapeado e sobre ele, uma lâmina plástica incolor para protegê-lo da água. Para desenhar no mapa, usavam-se lapiseiras preta, azul, vermelha e verde. Eram necessários ainda fita métrica e, é claro, martelo de geólogo. Não lembro se havia caderneta para anotar descrições, mas folhas em branco na prancheta pelo menos devia haver.

            Na Escola de Geologia da UFRGS, já na época um dos melhores cursos do país, eu aprendera que havia vários tipos de sonda: sonda manual, sonda rotary, etc. Mas nunca nos foi mostrado nenhuma delas, a não ser no papel, em apostilas. Pois nas Minas do Camaquã fazia parte da minha rotina acompanhar o trabalho de sondagem para pesquisa de cobre. E, como a sondagem era feita por uma empresa contratada, eu, que pela primeira vez na vida estava vendo uma sonda funcionar, ironicamente tinha a responsabilidade de fiscalizar esse trabalho, que era conduzido por um geólogo de grande experiência nessa área. E um geólogo, vejam só, que trabalhava justamente para a empresa aquela em que eu tanto quis trabalhar, mas cujo convite acabei recusando. A sondagem foi, então, meu segundo grande aprendizado nas Minas do Camaquã.

Eu disse que saíra da universidade conhecendo sonda apenas em apostilas. Mas, havia outro tipo de sondagem que nem mesmo em livros ou apostilas me haviam mostrado: a sondagem de subsolo. Jamais imaginara que lá em baixo, nas galerias, fossem realizados também furos de sonda. Pois eram, e coube a mim até planejar toda uma campanha de furos de sonda desse tipo.
Houve, por fim, mais um importante aprendizado extra: fazer cálculo de reservas, a partir dos dados obtidos com os furos de sonda. Foi mais um grande aprendizado.
O trabalho como geólogo valeu, como eu disse, por um ano adicional de curso universitário. Mas houve ainda um “curso de extensão”. Foi no setor de tratamento de minério. Não era atribuição minha, mas era inevitável o contato com essa atividade, até porque havia grande convívio com os engenheiros que lidavam com ela.
O minério que saía das minas passava por várias etapas de britagem e ia depois para a flotação. Dali saía um concentrado com 30% de cobre, que era enviado de caminhão e, a seguir, de trem para o estado de São Paulo, onde estava a metalurgia do grupo. Lá se extraía o cobre metálico.
Era interessante conhecer o que acontecia com a calcopirita e a bornita, tão bonitas, que a mina fornecia, até porque, quando acompanhávamos alguém em visita às minas, o roteiro incluía sempre essa etapa de tratamento do minério.
Eu disse que a bornita e a calcopirita eram bonitas?  Pois bem, no engenho, os dois minerais, com suas cores tão vivas, eram transformados numa massa pastosa, sem graça, cinza-esverdeada. Muito mais rica em cobre, mas sem nada da beleza original.


                                  Mina Uruguai hoje, com reservas esgotadas 


                                           No prédio branco do centro da foto
                                       ficava minha sala de trabalho



As Minas do Camaquã, como já disse, eram duas: a Mina São Luiz, com minério representado principalmente por calcopirita, que ocorria num veio de comportamento bem definido e previsível, e a Mina Uruguai, onde eu trabalhava, rica principalmente em bornita (mineral com teor de cobre maior que o da calcopirita), mais disseminada do que em veios. Ficavam a poucas centenas de metros de distância uma da outra e em ambas a lavra era subterrânea (mas passou a ser a céu aberto na Uruguai, anos depois).

Na Mina Uruguai, a lavra ocorria, naquela época, a 250 m de profundidade, e chegava-se até lá por um plano inclinado, caminhando. Nada de elevador, como na mina vizinha. Voltar à superfície exigia, é claro, um bom preparo físico, coisa fácil para os mineiros, que desciam e subiam todos os dias. Já para geólogos e engenheiros era um desafio, e eu era dos poucos que conseguiam subir sem parar no meio do caminho para recobrar o fôlego.
     Entre as duas minas, havia outro corpo de minério, chamado Zona Intermediária, onde predominava a calcocita (mais rica em cobre que a bornita e a calcopirita) e minerais oxidados, como malaquita e crisocola. Neste local, a lavra era intermitente e a céu aberto e costumava ser feita quando o teor do minério proveniente das outras minas por alguma razão sofria redução. 



                                            Morro da Cruz, importante ponto
                            geográfico da região das Minas do Camaquã


                                                                        Cine Rodeio


     As Minas do Camaquã me propiciaram outras alegrias além de um rico aprendizado profissional. Como colecionador de minerais, eu me deliciava vendo a enorme quantidade de bornita, calcopirita, malaquita, pirita, crisocola e, em menor quantidade, calcocita e outros minerais que lá havia. Enquanto o trabalho de mapeamento geológico pode nos fazer passar dias ou semanas sem ver um único mineral que valha a pena acrescentar à coleção, ver belos minerais era ali parte da minha rotina diária.


Trabalhei na Mina Uruguai treze meses. Teria ficado muito mais tempo talvez, não fosse a atitude discriminatória que teve uma vez comigo o administrador das minas. Eu era jovem e a vida ainda não me ensinara a ser tolerante e flexível como sou hoje nas relações profissionais. Não me arrependo, porém, e lembro com satisfação do muito que lá aprendi durante meu “5º ano de universidade”.


Artigo publicado originalmente na revista In The mine, nº 48, 2014.
Créditos das Fotos
Mina Uruguai - Joao Carlos Ebone
Outras – Pércio de Moraes Branco























3 comentários:

  1. Um dos engenheiros de minas que trabalharam nas Minas do Camaquã na mesma época que eu foi Nelsir Antônio Zonta. Era um técnico muito dinâmico e o mais entusiasmado de todos com o trabalho na mina.
    Como perdi o contato com ele há muito tempo, procurei-o agora pela internet. Não gostei do que descobri: o Zonta faleceu há 10 anos pelo menos e hoje é nome de rua em Caçapava do Sul. Justa homenagem, sem dúvida.

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  2. Fiquei sabendo hoje do recente falecimento de outro engenheiro de minas que trabalhou nas Minas do Camaquã na mesma época que eu Trata-se do meu grande amigo, meu colega também no curso Científico, em Passo Fundo, Paulo Nerci Gobbi. Ele residia em Gramado, mas estava em Goiânia, onde reside a família de sua esposa.
    O Gobbi era um sujeito muito inteligente e muito culto e lembro bem de uma noite em que ele e o Abílio, um dos médicos das minas, ficaram longo tempo discutindo a obra de Bach.
    Lamento saber que ele não estará presente no reencontro da turma do Cenav de 1965 que estamos pretendo realizar.
    Vai em paz, amigo !

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  3. Percio, seu blog é muito bom. Conteúdo maravilhoso!
    tenho 19 anos, irei cursar geologia e você esta sendo uma inspiração maravilhosa. Abraços!!!

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