domingo, 20 de março de 2011

CATARINENSES TAMBÉM TEMERAM CONTAMINAÇÃO RADIOATIVA



O mundo inteiro acompanha apreensivo o medo dos japoneses de um desastre nuclear em suas usinas, afetadas pelo terremoto de 11 de março de 2011. Mas, pouquíssima gente ficou sabendo que no verão de 1988 habitantes do litoral catarinense e turistas que frequentaram as belas praias daquela região também se assustaram com a possibilidade de sofrerem contaminação radioativa. Eu fui protagonista dessa história, mas juro que não tive culpa nenhuma !
Comecemos pelo começo.
Entre 1986 e 1991, a CPRM (Cia. de Pesquisa de Recursos Minerais), empresa para a qual eu trabalhava então, realizou o levantamento geológico de uma área de Santa Catarina delimitada pelas cidades de Biguaçu, Angelina, São Bonifácio e Paulo Lopes, incluindo também toda a ilha de Santa Catarina. Os geólogos responsáveis pelo trabalho foram Luiz Fernando Zanini e eu.
Foi estabelecido, no planejamento do projeto, que, além das características petrográficas das rochas (cor, estrutura, textura, composição mineralógica, granulação, etc.), seria feito simultaneamente um levantamento de suas características radiométricas, ou seja, se mediria sua radioatividade. Todas as rochas têm uma radioatividade natural e, embora essa propriedade não fosse considerada muito importante para o Projeto, decidiu-se medi-la sempre que possível para ter um parâmetro a mais de classificação e, quem sabe, descobrir alguma anomalia radioativa que indicasse algum depósito mineral de valor econômico. Assim, usamos sempre, além do equipamento indispensável num levantamento geológico (martelo de geólogo, bússola, caderneta de campo, etc.) também um cintilômetro, aparelho que mede índices de radioatividade.
Não era, como eu disse, uma informação fundamental para os nossos objetivos, mas atraía-me o fato de não se ter ainda esse tipo de informação sobre as rochas daquela região. Além disso, as areias das muitas praias poderiam, quem sabe, conter concentrações de minerais radioativos, como monazita, a exemplo das areias monazíticas de Guarapari (ES). Se a radioatividade da rocha já não era de grande importância, a das areias, menos ainda. Mas, tratei de medi-la sempre que possível, até porque, após uma etapa em que meu colega geólogo e eu trabalhamos juntos, passamos a constituir duas equipes, cada qual com um auxiliar de campo, e combinamos que a faixa do litoral ficaria comigo.
Bueno, chegou o verão e aí começou a ocorrer o seguinte: a gente catarina e os incontáveis turistas que para lá vão a partir de dezembro, estavam felizes da vida esparramados na areia, absorvendo os (até certo ponto) saudáveis raios de Sol, quando, do nada, surgia na praia um cara magro, alto, de botas, boné, um martelo na cintura, uma caderneta numa mão e um aparelho muito esquisito na outra (o citado cintilômetro). O modo de se vestir já causaria estranheza, é claro; os apetrechos, mais ainda; isso tudo, mais o formato do cintilômetro, simplesmente não permitiam a ninguém ficar indiferente ao espetáculo.
Além de o cintilômetro ter todo o jeito de uma arma de filme de ficção científica, o alienígena era seguido por outro ser - menos estranho. é verdade -, mas que parecia lhe dar cobertura no que poderia ser um início de invasão da Terra.
Cintilômetro (Foto: Wikipédia)
Com a cabeça cheia de minhocas, os banhistas acompanhavam as duas figuras intrigadíssimos. E mais intrigados ainda ficavam quando o cara armado curvava-se para a frente, encostava a pistola na areia, ficava uns segundos olhando para ela, endireitava-se e fazia uma anotação na caderneta. Podia não ser uma invasão marciana, mas ter a paz e a harmonia do local tão bruscamente violadas merecia uma boa explicação. E sempre havia alguém – estranho, geralmente uma mulher – que vinha perguntar o que estava acontecendo.
Aí, calmamente, eu explicava que estávamos medindo a radioatividade da areia. Pronto, bastava isso para acionar metade dos mecanismos de defesa da pessoa. Estávamos em 1988, e fazia apenas um ano que ocorrera o acidente nuclear com o césio 137 em Goiânia, de modo que aquele fato estava muito vivo ainda na memória de todos os brasileiros. Ligando as coisas, a até então tranquila banhista tinha os restantes 50% de suas defesas colocados em alerta.
- O quê ?! Essa areia é radioativa ?!
Aí, procurando parecer o menos marciano possível, eu explicava que toda rocha e toda areia têm uma radioatividade natural e o que estávamos medindo era tão somente essa radioatividade normal.
Um, pouco mais calma, a moça do corpo dourado do sol catarina perguntava como funcionava o aparelho. Eu explicava isso pacientemente ao grupo – sim, já havia um grupo em torno de mim – e acrescentava que o cintilômetro podia ser usado tanto para testar a radioatividade de rochas, areias e qualquer outra substancia, como também para investigar se uma pessoa estava contaminada por radiação. Para mostrar como se fazia o teste de contaminação de um ser humano, eu aproximava o aparelho da pessoa que fizera a pergunta. Pronto ! Novo susto ! Ela dava um pulo para trás como se fosse ser atingida por uma descara de mortíferos raios gama.
Nova e calma explicação para lhe mostrar que o aparelho servia para detectar fontes de radiação, não para emitir radiações. Novo suspiro, de novos os ombros bronzeados se abaixavam, e voltavam a baixar também os níveis de desconfiança. E só saíamos quando todos se mostravam, aparentemente pelo menos, convencidos de que a radioatividade que medíamos era natural e inofensiva.
Confesso que, no fundo, algumas vezes senti um certo prazer sádico com esses sustos. Pois Deus, que sempre me acompanha, resolveu dar o troco.
A radioatividade das areias ficava quase sempre abaixo em torno de 50-60 cps (choques por segundo), valor decepcionantemente baixo. Era tão baixo que só mesmo minha persistência de taurino me fazia continuar medindo-a tão diligentemente em todas as praias. Para se ter uma ideia da titica que isso representa, havia granitos na mesma região com radioatividade seis vezes maior, em torno de 330 cps.
Pois bem. Um dia, descobrimos que, na Ponta das Arminhas,  em Palhoça, em trecho de praia muito procurado pela população e pelos turistas, havia pontos onde a areia mostrava mais de 800 cps de radioatividade! Isso não me assustou, ao contrário, me encheu de entusiasmo. Afinal, era o que eu mais desejava encontrar, de modo que isso só fez aumentar minha dedicação à tarefa de pesquisar a radioatividade das areias catarinenses. Passados alguns dias, porém, parei pra pensar. Puxa vida, 800 cps era radioatividade pra caramba ! Nada perto dos 10.000 cps da autunita, mineral de urânio que podia ser visto na minha coleção de minerais (lá no fundo de uma das prateleiras...), mas era valor muito mais alto que o mais alto encontrado nos 2.366 km² da área do Projeto !
O efeito da radioatividade depende da sua intensidade e do tempo de exposição a ela. Ali na praia, talvez a exposição não fosse prolongada, mas o povo podia deitar exatamente em cima da fonte radioativa ! Resultado: depois de assustar o povo fui eu que perdi a paz ! Eu dizia aos banhistas para ficarem tranquilos, mas será que podiam ficar mesmo, se em alguns pontos o cintilômetro gritava 800 cps!
Logo que pude, fui falar com meu colega Antônio Flávio Uberti Costa, especialista em Geofísica que orientava esse trabalho no nosso Projeto. Perguntei se havia perigo para a população, mas ele não soube responder; disse que quem podia me informar isso eram os médicos. Busquei então um radiologista bem conhecido em Porto Alegre, Dr. Dakir Duarte. Para minha sorte, além de sua grande experiência em sua especialidade, ele tinha interesse pessoal em radioatividade de areias de praia.
Apresentei ao Dr. Dakir os dados que eu tinha, mas ele não sabia o que representava um choque por segundo, pois trabalhava com outra unidade, o rem (roentgen equivalent in man). Conseguimos, porém, fazer a conversão e ele fez um cálculo. Mesmo que uma pessoa ficasse deitada exatamente em cima da anomalia radioativa três horas por dia, durante os três meses de veraneio, a dose de radiação que receberia seria inofensiva. Disse mais: a radioatividade máxima que encontramos em Santa Catarina era equivalente à de Guarapari (ES), que é considerada a mais alta do mundo. Portanto, concluí, vamos a la playa, que a monazita dela não faz nem cócegas.
Monazita de areia de praia
Já que eu estava falando sobre radioatividade com um especialista da área médica tratei de esclarecer outra dúvida: se a radioatividade pode provocar câncer, como é que as areias radioativas de Guarapari fazem bem à saúde ?
Esclareceu ele então que quando se descobriu que substâncias radioativas podiam ser usadas para combater tumores – campo da Radioterapia – o mundo inteiro começou a achar que areias radioativas eram saudáveis, mesmo que a pessoa não tivesse tumor algum. Aí, veio a II Guerra Mundial e, com ela, as bombas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki. As mortes que aquelas bombas causaram deixaram claro que energia nuclear pode curar, mas pode também matar, e as areias radioativas passaram a ser vistas com desconfiança. Como os brasileiros, porém, assistiram à II Guerra Mundial de longe, continuaram procurando as praias de Guarapari como recurso terapêutico.
Mas, afinal, elas fazem bem ou mal ? Como dissemos, a radiação é alta, mas não afeta o corpo humano. Então, mal ela não faz. E bem ? Aí depende, disse o Dr. Dakir: se você está deitado na areia, tranquilo, curtindo suas férias, longe do trabalho e ainda por cima acreditando que as areias monazíticas fazem bem à saúde, como duvidar que elas funcionam mesmo ?
Portanto, repito: Vamos a la playa !!!

12 comentários:

  1. Eu não quis deixar ainda mais longa uma história que já estava bem comprida. Mas, aquela autunita de 10.000 cps que eu citei deu origem a uma outra história... Qualquer hora eu conto.

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  2. Legal Pércio, sempre trazendo novidades ao Blog com muitos assuntos diferentes e interessantes mesmo... Coisas que observamos diariamente mas não nos questionamos você vai atrás e acha a resposta:) Por incrível que possa parecer há ainda muito a se fazer no campo da pesquisa. Mas é preciso além de saber poder vivenciar os fatos e visualizá-los de fato. Que tal analisar as areias do Hawaí?

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  3. Bela sugestão, Jane... Mas, do Hawai o que me interessa mesmo são aqueles maravilhosos vulcões em atividade..

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  4. Acabei de descobrir seu Blog prof Pércio e estou maravilhada com tantos assuntos fascinantes em torno do encantador universo geológico.
    Estarei sempre por aqui buscando sua maestria em traduzir conhecimento em palavras. Obrigada.

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  5. Prezado Percio, talvez 3 meses sentado á praia, não sejam (ainda) causadores de malefícios ou benefícios à saúde.(a ciência é uma criança e a energia atômica então nem se fala)
    O que foi estudado e comprovado então, de moradores que se alimentam e vivem nestas áreas, expostos 24 horas por dia, e no caso de onde eu vivo, próximo/sobre restos de lavra de monazita, sendo neste caso uma área com porções concentradas do mineral?
    Sabemos que a extinta CNEN e órgãos do tipo nunca alertaram nem alertariam sobre riscos. Vemos um caso claro em Caitité-BA e governos que vivem dizendo que suas usinas são seguras....
    Saudações

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Comporeendo sua preocupação, vivendo como vive em uma área onde houve lavra de monazita. O que está provado, porém, é que a radiação gama tem muito pouca penetração. A amostra de autunita da minha coleção que eu citei, dá 10.000 cps, um valor altíssimo. Mas, a apenas 10 cm de distância a intensidade da radiação já cai para 5.000 cps. Se eu morasse onde você mora, então, minha preocupação seria não levar monazita para dentro de casa.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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